sexta-feira, 4 de abril de 2008

opinião — Gustavo Pires




Anomalias


Seria bom termos a sorte ou o engenho que nos permitisse de uma assentada, tal como o fez Emmanuel Todd relativamente à desagregação da União Soviética, identificar a anomalia significativa que, no mundo do futebol, a mudar, só por si, mudaria o curso dos acontecimentos.

Gustavo Pires *


Em 1976, Emmanuel Todd, um cientista social francês, no livro “La Chute Finale: Essai sur la Décomposition de la Sphere Soviétique”, foi capaz de prever que, no prazo de dez a vinte anos, aconteceria o desmoronamento da União Soviética! Depois, quando a sua previsão se tornou realidade em 1989 e lhe perguntaram em que é que ele se tinha baseado para acertar em cheio, Todd limitou-se a responder que reparara que a União Soviética era um dos poucos países em que as estatísticas da mortalidade infantil continuavam a aumentar. Era uma grave anomalia de funcionamento da sociedade soviética e, como refere Gilbert Heebner, uma das sete leis para prever o futuro diz-nos precisamente que as anomalias são sempre significativas.

Quando hoje olhamos para a vida dos grandes clubes, podem ser identificados um conjunto de anomalias que nos levam a prever que o seu futuro não será muito brilhante, a menos que mudem significativamente a rota dos acontecimentos. São elas:

1. Liderança — Não é um bom sinal para o futuro o estilo de liderança dos presidentes dos clubes. Entre o estilo carismático, o estilo “quero posso e mando” e o estilo diletantemente irresponsável, é necessário encontrar um estilo que garanta aos clubes uma vida independente da personalidade dos seus presidentes.

2. Para além da máquina — Todo e qualquer clube tem de criar ordem de modo a poder viver com alguma tranquilidade. E hoje, tudo aquilo que os grandes clubes menos têm é uma vida tranquila. Para assegurarem a sua tranquilidade, os clubes têm de se estruturar com coerência e eficácia. Para o efeito, devem ultrapassar a lógica da dimensão máquina que está no espírito de cada dirigente, a fim de serem capazes de integrar o trabalho dos vários departamentos e serviços, de maneira a que cada um deles seja detentor do plano global do organismo. Esta perspectiva obriga à existência de uma estrutura bem equilibrada entre os seus aspectos orgânicos e burocráticos.

3. Credibilidade — Os clubes, mais do que qualquer outra organização, são o seu próprio produto, quer dizer que, em grande medida, vivem da sua imagem para além da equipa de futebol, do treinador ou dos apaniguados. Em conformidade, a sua melhor aposta, independentemente da equipa ganhar ou perder, é uma estratégia de produção de si mesmos, quer dizer, de valorização da sua própria identidade. A imagem dos clubes tem de estar acima de qualquer suspeita e hoje o sinal que muitos deles transmitem tem a ver com tudo menos com credibilidade.

4. Intenção estratégica — Como tivemos a oportunidade de ver nos últimos anos com Carlos Queiroz, Carlos Carvalhal, Jesus Jorge e alguns outros, se o produto futebol evolui lentamente, a maneira de o produzir transformou-se a uma velocidade vertiginosa. O aspecto mais notável desta constatação é que, nos últimos anos, o conhecimento tornou possível a idealização de estratégias de ataque do fraco ao forte que hoje já estão a pôr em causa os tradicionais resultados da 1ª Liga. Entretanto, os grandes clubes estão com enormes dificuldades em se adaptarem a esta nova realidade.

5. Soma nula — O produto futebol necessita ser inovado numa nova estrutura de competição a funcionar para além do tudo ou nada dos quadros competitivos do Modelo Europeu de Desporto. O jogo de soma nula em que o futebol sobrevive está a pôr em causa o seu próprio futuro. Os clubes necessitam de uma nova estrutura competitiva que salvaguarde a sua vida futura no quadro das exigências da dinâmica das competições europeias. Quer dizer, necessitam de uma nova forma de produzir futebol que ultrapasse as anomalias que caracterizam a actual estrutura competitiva.

6. Criatividade — A criação de um futuro novo em que os clubes estejam envolvidos requer criatividade. O problema é que a criatividade em princípio é geradora de desordem. Saber gerir a desordem é necessário para promover criatividade. A criatividade tem de passar a fazer parte da cultura dos clubes. Sem que eles caiam na anarquia. E clubes há que caíram na anarquia.

7. Acaso — Só um clube ágil, com iniciativa, está preparado para gerir o acaso. Contudo, quanto mais os clubes se organizam, mais incapazes se tornam em gerir o acaso. O abandono a que os treinadores são votados, sobretudo nos momentos de derrota, é um dos sinais mais significativos da incapacidade de gerir do acaso. No futuro, isso ser-lhes-á fatal. É necessário incorporar a incerteza do futuro na vida e na cultura do clube.

8. Inovação — Os clubes necessitam de inovar. A inovação pressupõe clubes aprendentes. Que sejam geradores de novos conhecimentos que se ajustem em tempo real à sociedade aonde estão inseridos. E hoje, na sociedade global, surgem novas oportunidade para desencadear processos de inovação. Um clube incapaz de inovar não tem futuro. Porque não tem criatividade, nem é capaz de gerir o acaso.

9. Antecipação — Perante o cenário de turbulência do mundo do futebol é necessário que os clubes deixem de funcionar numa lógica de previsão, para passarem a funcionar numa lógica de antecipação. É inglório continuar a correr atrás dos acontecimentos. Ou os clubes passam a funcionar numa perspectiva de antecipação aos acontecimentos ou as suas dificuldades vão aumentar significativamente. Não podem é continuar a correr atrás dos acontecimentos.

10. Formação — Toda a lógica de formação que alimenta o processo de desenvolvimento a montante tem de ser revista e enquadrada num modelo organizacional profundamente pedagógico, sob pena do futebol e os próprios clubes se transformarem em entidades socialmente desacreditadas. Como refere Agostinho Oliveira, o «número de estrangeiros nos juniores é preocupante». Hoje, em Inglaterra, os professores já questionam se a figuras como David Bekham não são prejudiciais para as crianças?

Seria bom termos a sorte ou o engenho que nos permitisse de uma assentada, tal como o fez Emmanuel Todd relativamente à desagregação da União Soviética, identificar a anomalia significativa que, no mundo do futebol, a mudar, só por si, mudaria o curso dos acontecimentos. Na impossibilidade de o fazermos, como refere Bruno Jarrosson, só nos resta apostar no desenvolvimento de uma cultura de reflexão sobre aquilo que as nossas representações da realidade nos podem trazer de mais útil, através da construção de “grelhas de interrogação do real”, nas quais esperamos encontrar algumas respostas para a organização do futuro. É o que se espera que os clubes de futebol sejam capazes de fazer.

* com António Cunha (FD/UP)

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