sexta-feira, 7 de março de 2008

Opinião — Manuel Sérgio





Bobby Fischer
— o herói e o vilão

Possuindo as grandes centrais de manipulação da opinião pública, a América espalhou pelo mundo a figura e os feitos de Bobby Fisher. Residia nele uma inteligência fulgurante, que deitou por terra a supremacia habitual dos xadrezistas soviéticos.

No fim de uma das sete partidas que Bobby Fisher realizou, na disputa pelo título mundial de xadrez, o soviético Boris Spassky levantou-se e aplaudiu emocionado o seu adversário. Isto, numa modalidade desportiva onde as demonstrações imparáveis de admiração pelo adversário são raríssimas. O próprio Bobby Fisher afirmou, um dia, com deleite, que gostava de «esmagar o ego dos jogadores oponentes». Mas aquela tinha sido uma partida incomum. O excêntrico Fisher começou a perder, perdendo mesmo duas partidas, mas “deu a volta” e tornou-se, até hoje, o único norte-americano a conquistar um título mundial de xadrez. A vitória, em plena Guerra Fria, teve grande peso simbólico. A União Soviética pretendia mostrar ao mundo que o marxismo-leninismo produzia melhores cérebros, melhores corpos, uma sociedade mais perfeita. Os Estados Unidos da América do Norte pretendiam afirmar que na economia de mercado estavam o progresso e o desenvolvimento. Ora, a mestria, na prática do xadrez, sempre esteve associada a uma inteligência invulgar e, nas vitórias de Bobby Fisher, a América do Norte encontrou uma boa ocasião para proclamar “urbi et orbi” que a democracia liberal norte-americana produzia pessoas de inteligência mais vibrante do que as criadas sob regime comunista. Possuindo as grandes centrais de manipulação da opinião pública, a América espalhou pelo mundo a figura e os feitos de Bobby Fisher. Residia nele uma inteligência fulgurante, que deitou por terra a supremacia habitual dos xadrezistas soviéticos. Em 1972, um norte-americano gritava ao mundo todo que o desporto, a ciência, a arte, etc., etc. tinham a sua verdadeira pátria, na América do Norte.
Mas o seu estatuto de herói nacional depressa se desvaneceu. Ao falecer, no passado dia 17 de Janeiro, em Reykjavik, na Islândia, a cidade onde teve lugar a histórica disputa, que findou com a derrota espectacular de Boris Spassky, Robert James Fischer, de 64 anos, era um vilão que renunciara à cidadania americana. Depois de 1972, a sua vida transformou-se numa espiral descendente de um comportamento anómalo. O ex-prodígio tornou-se conhecido pelas suas catilinárias de anti-semitismo. Um judeu, no seu entender, era um perigo para a humanidade. Bem andou o Hitler em tentar erradicá-los da face da terra. Um louco, de facto! Em 1992, tornou a disputar e a vencer um jogo de xadrez, com Spassky, não deixando dúvidas a ninguém do seu extraordinário valor, como xadrezista. A partida, que lhe rendeu a gorda quantia de cinco milhões de dólares, realizou-se na Jugoslávia do ditador Slobodan Milosevic, então sob o embargo norte-americano. Bobby Fisher, se voltasse ao seu país seria processado e, com toda a certeza, condenado. Em 2001, logo após os lamentáveis atentados do 11 de Setembro, concedeu uma entrevista delirante, na qual aprovou o feito dos fanáticos da Al Qaeda. O terrorismo, contra aquele país, era um acto heróico, dado que ele era a fonte inesgotável de todos os males que afligiam o nosso mundo. A causa da morte de Bobby Fisher não foi divulgada, mas muitos o consideravam já em estado adiantado de demência. Que era um génio, na prática do xadrez – não há dúvidas, a este respeito. Que adoptasse o linguajar do terrorismo islâmico, declaradamente criminoso, é de lamentar. O seu génio de xadrezista merecia uma outra ética, uma outra mundividência.
O ser humano é uma tarefa a realizar. Nele, nenhuma realização é o fim último. Não basta ser xadrezista genial, ou desportista de invulgares qualidades técnicas, para ser Homem, na verdadeira acepção desta palavra. Para ser Homem, é preciso vencermo-nos, antes de vencermos os outros. Bobby Fisher foi um vencedor, no desporto. Mas perdeu na vida...

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