sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Opinião — Manuel Sérgio






Manuel Sérgio


Entre o Passado e o Futuro


O Futuro está por construir. Uma sociedade desenvolvida deverá entender-se, não em função da alta tecnologia que produz, mas sobretudo sobre os benefícios dessa tecnologia para todos os cidadãos.



“Entre o Passado e o Futuro” é o nome de um livro de Hanna Arendt. Posso até começar com uma frase deste livro: «O testamento, que indica ao herdeiro aquilo que legitimamente lhe pertence, transmite ao futuro os bens do passado. Sem testamento ou, para aclarar a metáfora, sem a tradição – que escolhe e nomeia, que transmite e preserva, que indica onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – é como se não existisse continuidade no tempo e como se, por conseguinte, não houvesse nem passado nem futuro, em termos humanos, mas apenas a perpétua mudança do mundo e o ciclo biológico dos seres vivos» (Relógio d´Água Editores, 2006, p.19). Costuma dizer-se que a civilização ocidental assenta sobre quatro pilares: a filosofia grega, o espírito jurídico latino, a religião judaico-cristã e o espírito crítico que nasce com o Renascimento. Mas... o que distingue o nosso tempo? A Nova Física diz-nos que a realidade se revela mais como “possibilidade” do que como “causalidade rigorosa” e onde, por isso, a fé e a ciência cabem inteiramente. E assim, diante da realidade, há um conhecimento causal e experimental e matematizável e também uma vivência mística da «Unidade fundamental de todas as coisas». A compreensão do Todo pede bem mais do que aquilo que os laboratórios dão. A fé é necessária, até como nova forma de conhecimento das coisas materiais, já que a matéria é bem mais do que matéria. No fundo, ela é Forma, Simetria, Relação. A crise ecológica do nosso tempo resulta do facto de não descobrirmos Espírito na Matéria. Nesta conformidade, Ciência e Fé completam-se. É que, nem uma, nem outra, descrevem completamente a realidade. Não têm razão, portanto, o positivismo e o neopositivismo, nem todo o tipo de fundamentalismo religioso, porque onde há Espírito há Matéria e onde há Matéria há Espírito.
O neoliberalismo, ou a nova liberdade que nos prende a um modelo económico globalizante e excludente; o “pensamento único”, ao serviço do neoliberalismo dominante, ou da “ditadura do lucro”; a sociedade do espectáculo onde naufragam valores imprescindíveis a uma vida com dignidade – resultam do desconhecimento da Nova Ciência que nasce com o anúncio de Koyré que se passou de um “mundo fachado” a um “universo infinito”. Depois de ouvirmos falar alguns economistas que são políticos e alguns políticos que são economistas, que primam ambos pelo cálculo e pelas estatísticas, somos tentados a concluir que nos encontramos diante de pessoas da mais actualizada ciência. Só que, assim como uma teoria física é uma imagem construída por nós, segundo o físico alemão Heinrich Hertz, também a economia que os neoliberais nos apresentam é, toda ela, feita de acordo com os interesses da “classe dominante”. Por isso, num mundo onde proliferam os economistas de renome internacional, nasceu um novo colonialismo onde o que é bom para a General Motors é proclamado como coisa boa, para o mundo todo! E, num tempo onde se multiplicam as instituições de solidariedade social, a globalização não passa por vezes (demasiadas vezes) de cocacolonizar e recolonizar os países mais pobres, ou que os Estados perderam a sua identidade, pois que é o dinheiro que tudo governa, ou ainda que o desenvolvimento tecnológico, atraente e garrido, não concorre ao termo do desemprego, ou que o Estado de Direito é uma falácia, dado que as leis são “as leis da selva”. De facto, como se provou, não era o Iraque de Saddam Hussein a causa principal da crise generalizada que nos avassala mas, acima do mais, a “divinização” de um sistema económico que põe a ciência ao serviço da mais flagrante injustiça social. Aliás, para os pseudo-cientistas que nos governam, as coisas não são boas por serem verdadeiras ou não, mas por serem, ou não, vendáveis. Por outras palavras: as coisas só são boas, se dão lucro! Qualquer consideração de ordem moral não entra nas contas destes insignes matemáticos!
Não se passou do capitalismo à globalização, porque esta é a forma actual do capitalismo! Mal da humanidade se tudo isto fosse o “fim da História”. Pelo contrário: tudo isto há-de ser Passado. De acordo com Max Weber, foi o ascetismo protestante que deu ao lucro, como fim em si mesmo, a grande motivação para se transformar no grande ídolo do nosso tempo. O Futuro está por construir. Uma sociedade desenvolvida deverá entender-se, não em função da alta tecnologia que produz, mas sobretudo sobre os benefícios dessa tecnologia para todos os cidadãos. Sabemos bem como uma tecnologia, sem outros valores, conduz a inúmeros crimes ambientais. Cientificar não pode significar desumanizar.

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