sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Opinião — Gustavo Pires






Gustavo Pires

Sentido Estratégico

A par de honrosas excepções, muitos dirigentes foram anos a fio e ainda são o principal cancro do desporto nacional. Em consequência, o Estado tem vertido milhões no desporto nacional, para continuarmos em último lugar nas estatísticas europeias de prática desportiva.

Gustavo Pires

O chamado modelo Europeu de Desporto está a atingir o limite daquilo que é admissível. Recentemente o Sr. Joseph Blatter, o todo poderoso presidente da FIFA, foi a Madrid ameaçar o Governo espanhol. Dizia ele que, em seis horas, acabava com a participação da selecção espanhola no Euro 2008. Felizmente, a nível da Comissão Europeia, já começaram a perceber que estes senhores só querem um estatuto especial para o desporto para afirmarem ainda com mais força a sua pesporrência em defesa de um desporto que é o deles.

A grande maioria dos dirigentes desportivos do vértice estratégico do desporto consideram-se pertencentes a uma casta nobiliária que pode e deve funcionar acima do comum dos mortais e à margem de todo o controlo das autoridades governamentais, só porque aquilo que fazem faz bem às criancinhas. Dizem eles. O problema é que as criancinhas são tudo menos a primeira das suas preocupações. Depois, as organizações, a que presidem, recebem milhões quer directa, quer indirectamente do Estado mas, em simultâneo e sem qualquer pudor, defendem menos Estado no desporto. Quanto a nós, até deviam ficar sem Estado nenhum desde que também ficassem sem dinheiro nenhum. Muitas destas organizações já nem cumprem a missão pública a que são obrigadas pelos seus próprios estatutos, pela simples razão de que o poder arrogante do dinheiro fácil subiu à cabeça dos seus dirigentes.

Nos mais diversos países do mundo, o Estado está de cócoras perante um movimento desportivo que, como Blatter bem demonstrou, pretende ser um Estado dentro do próprio Estado.

Em Portugal, ao longo da última década, os diversos Governos têm vindo a claudicar de uma forma vergonhosa. José Lello acompanhado de Manuel Brito, pagaram caro a ousadia de pretenderem colocar a cúpula do movimento desportivo na ordem. Agora, Laurentino Dias está a passar por enormes dificuldade, em primeiro lugar porque está sozinho, não tem um Manuel Brito nem coisa que se lhe pareça, em segundo, porque não conseguiu dar um sentido estratégico às políticas do Governo. Quanto a Hermínio Loureiro, se quis ter algum descanso, condecorou e distribuiu dinheiro. Se os portugueses relativamente à primeira olharam para ela com a sabedoria e o humor de mais de oito séculos de história, quanto ao dinheiro já foi com preocupação que olharam na medida em que ele lhes saiu dos bolsos e não há qualquer relatório que prove que o dito foi gasto verdadeiramente com os atletas.

O desporto em Portugal está em “roda livre”. Já não respeita, sequer, quem lhe dá pão para a boca. A estratégia de confrontação tem sido uma constante. O Estado está de cócoras. Contudo, nem sempre foi assim. Na realidade, quem se der ao trabalho de procurar o que se passou ao longo dos últimos quase 102 anos, quer dizer, desde que, em 9 de Junho de 1906, o Olimpismo foi institucionalizado em Portugal, pode verificar que a opção por uma estratégia de confrontação para com o Governo não é matéria nova. A diferença é que, dantes, o Governo sabia bem como actuar. Por exemplo, fez precisamente no passado dia 27 de Fevereiro sessenta anos que o Inspector Salazar Carreira, da Direcção-Geral da Educação Física Desporto e Saúde Escolar, escreveu uma carta a Otto Mayer, chanceler do Comité Olímpico Internacional aonde dizia:
«Fui encarregue, pelo Sr. Director Geral dos Desporto, de vos fazer oficialmente a comunicação seguinte: Pelo Decreto-Lei 36:762, de 20 de Fevereiro corrente, o Governo português retirou todas as prorrogativas ao Comité Olímpico Português porque os seus membros não quiseram submeter-se às disposições legais em vigor.
Deste facto, a Direcção-Geral de Educação Física e do Desporto, o único organismo representante oficial do Governo na hierarquia desportiva, leva ao conhecimento do Comité Internacional Olímpico que o Comité Olímpico Português está de hoje em diante fora de toda a hierarquia desportiva e já não tem competência para representar o país nas relações olímpicas.

Aceite meu caro Chanceler as nossas saudações…. etc.»

Assina o Inspector dos Desporto José Salazar Carreira.

Agora, a questão está no Regime Jurídico das Federações Desportivas. Como seria de esperar, perante a vontade do Governo introduzir «democraticidade, representatividade e transparência» num sistema que está perfeitamente caduco, logo surgiu um «sentimento generalizado de insatisfação e desconforto do movimento associativo e desportivo».

Esta cultura do sistemático do “contra” já vem de longe. O problema é que se dantes tínhamos um Estado que sobre estas matérias tinha os ditos no lugar, hoje, sobre a mesma matéria, temos no lugar os ditos. Os ditos, que se prolongam anos a fio agarrados ao poder, sem que ninguém seja capaz de lá os tirar.

Ao tempo, a contestação da lei, por parte do COP, não foi tratada pelo Ministro da Educação, pelo Secretário de Estado ou sequer pelo Director-Geral. A questão foi tratada por um simples inspector, que, embora de grande prestígio e uma figura que hoje faz parte da história do desporto nacional, não passava de um subalterno. E o subalterno escreveu para o Chanceler do Comité Olímpico Internacional, não para lhe dar explicações, mas para o informar, sem quaisquer tergiversações, da posição drástica do Governo português. E nem foi por se estar a escassos meses dos Jogos Olímpicos de Londres (1948) que a questão não foi decididamente resolvida. E a mensagem foi simples: se os dirigentes do COP queriam lá estar, era para defenderem os interesses do País sob a tutela do Governo. O que depois aconteceu é bem curioso, mas são cenas para um próximo capítulo.

A par de honrosas excepções, muitos dirigentes foram anos a fio e ainda são o principal cancro do desporto nacional. Em consequência, o Estado tem vertido milhões no desporto nacional, para continuarmos em último lugar nas estatísticas europeias de prática desportiva. Quando uma situação destas acontece, a obtenção de medalhas olímpicas é tão só o indicador do nosso subdesenvolvimento. Porque, enquanto o vértice vive à tripa forra, a base vive nas maiores dificuldades. E o nível desportivo de um país mede-se precisamente por esta relação entre a massa e a elite. Laurentino Dias parece querer acabar com esta situação. Entre outras medidas de higiene democrática, pretende limitar os mandatos de suas excelências. E ainda bem. Pode ser que se aguente. A ver vamos. É a sua última oportunidade para dar algum sentido estratégico ao desporto.

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