sexta-feira, 20 de junho de 2008

Opinião: Manuel Sérgio







Para um novo paradigma
do saber... e do ser! (I)


Antes de existir futebol ofensivo ou futebol defensivo, há o movimento com intencionalidade, ou seja, a motricidade humana...

Não vou forragear, imediatamente, alguns temas, sobre o "ser", num texto que se destina à publicação num jornal desportivo, que tem outros assuntos para ocupar-se. A interpretação do “ser como acto” (afinal a unidade do teórico e do prático, ao nível do conhecimento) encontramo-la, em aguarelas fortes, já em S. Tomás de Aquino, como resultado da assimilação da filosofia aristotélica. Pensar o ser significa, portanto, em finais da Idade Média, tematizar a perfeição do “ser como acto”. Em Descartes, os caminhos do pensar, pela mediação da técnica, dependem do agir. E não sei se a dúvida cartesiana não atinge a física dos nossos dias. Não é verdade que, em toda a Idade Moderna, se esqueceu a relação dialéctica, entre a “vita contemplativa” e a “vita activa”? Mas centremo-nos em autores mais próximos de nós. O marxismo, que atravessou ovante, praticamente todo o século XX, fazia suas as palavras de Marx, em "O 18 do Brumário de Luís Bonaparte": «Os homens fazem a sua própria história.» Que o mesmo é dizer: o homem passa da ideia subjectiva à verdade objectiva, através da prática, a qual historicamente se vai completando e realizando. Heidegger, na sua obra "Sein und Zeit", procura o sentido do ser. Só que o sentido do ser revela-se na existência do Homem, na sua acção. Na "Carta sobre o humanismo" emerge o seguinte: pensar o ser significa agir por ele e nele. Em "L’être et le néant", Sartre faz ressaltar a liberdade na construção do futuro, e adianta: «O homem não é mais do que ele a si mesmo se faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.» E, ao fazer-se, ele é o “doador de sentido”, em relação ao mundo envolvente. Daí, a existência preceder a essência. Não esqueço deste autor a célebre frase: «Nous n’avons jamais aussi libres que sous l’Occupation», lembrando-nos que a linguagem da acção não é a linguagem do simples movimento. Teilhard de Chardin, no "Fenómeno Humano", tendo sempre presente o cósmico e o crístico, como sacerdote que é, encontra sentido, na acção humana: «Quanto mais o Homem chegar a ser Homem, tanto menos aceitará mover-se noutra direcção que não seja aquela que leva para o interminavelmente, indestrutivelmente novo.» Acção sem sentido não passa de mera agitação ou capricho. A intencionalidade, assevera Levinas, é «essencialmente o acto de emprestar um sentido» ("En découvrant l’éxistence, avec Husserl e Heidegger"). Habermas, mantendo-se fiel à tradição dos nomes cimeiros da Escola de Frankfurt, recebe forte influência de Marx e Freud e, assim, toda a sua filosofia assenta numa História que se processa, sob o ideal da emancipação. De facto, ele procura uma ética universal, não metafísica, mas antropológico-linguística, em que o agir seja comunicacional. Segundo a fenomenologia (entre os varões assinalados desta filosofia, Husserl é o primeiro) a consciência resume-se a uma “vivência intencional”. A radical diferença, entre Descartes e Husserl, está aí na intencionalidade. Não mais o "ego cogito", mas o "ego cogito cogitatum", onde o mundo permanece, enquanto "cogitatum". Em Maurice Merleau-Ponty porque, entre o meu corpo e o mundo, há uma íntima relação de envolvimento, a minha motricidade supõe intencionalidade. Não me parece desajustada neste interim uma citação do escritor Vergílio Ferreira, em prefácio que antepôs ao "Existencialismo é um Humanismo", de Jean-Paul Sartre: «A Fenomenologia fixa-nos (...) que o homem é, no reino da criação, não apenas o rei, mas largamente o verdadeiro criador». Mas, sem esquecermos que «um acto de liberdade é uma posição de fins, de valores». Paul Ricoeur, que muitos denominam o "filósofo da acção", grafou, na "Encyclopedia Universalis": «Se há uma linguagem da liberdade, tal resulta de antes haver uma linguagem da acção.» A história da acção é a história da sua aliança com a liberdade. E a filosofia não cansa, no seu afã de ligar "ser" e "acção". Também no desporto o "ser" é "acção". No livro de Luís Freitas Lobo, "Planeta do Futebol" (Prime Books, 2007, pp. 25/26), encontra-se o seguinte: «Existe como que uma falsa superioridade moral da acção ofensiva. É um monstro com "pés de barro". Isto porque, na prática, o futebol ofensivo nasce, no relvado, da forma como os elementos mais recuados conseguem pré-conceber, mesmo antes de recuperar a bola, o movimento ou passe que vão fazer, após consumada essa recuperação. Ou seja, o dito futebol de ataque tem origem na postura (entendida como correcta distribuição posicional e da chamada acção-reacção do pré e pós recuperação da bola) dos jogadores mais recuados. Quando não tem a bola, para além de pensar só em recuperá-la, a equipa já deve saber, com clareza, o que fazer com ela após resgatar a sua posse. É esta a génese da transição rápida. Mudar na mente do jogador o "chip" da acção defensiva, para a ofensiva, e vice-versa, da forma mais rápida possível». Não há desporto sem acção. Fazer desporto é agir com intencionalidade. Antes de existir futebol ofensivo ou futebol defensivo, há o movimento com intencionalidade, ou seja, a motricidade humana...
Em "Assim falou Zaratustra" e "Para Além do Bem e do Mal" e "Gaia Ciência" (e outros livros poderíamos citar), Nietzsche continua vivo, designadamente na pós-modernidade que atravessamos, como professor da “vontade de poder”, defensor da superioridade da vontade sobre a razão e valorando a criação do superhomem sobre um criatianismo que realça, para ele, os sentimentos de covardia e conformismo. Deus morreu e, portanto, todo o fazer é um fazer-se, sob os imperativos da vontade de poder. Vou salientar, agora, dois filósofos, de labor pertinaz e silencioso, actualmente pouco citados: Maurice Blondel (1861-1949) e Louis Lavelle (1883-1951). A redacção definitiva de "L’Action", de Blondel, ressoa o convívio com a filosofia de S. Agostinho (em primeiro lugar e acima do mais) e S. Tomás de Aquino, sob a metodologia de uma "fides quaerens intellectum" ou de um "intellectum quaerens fidem". O princípio da filosofia blondeliana é a realidade (não é o conceito tão-só) da Acção, como verdadeiro agir do ser. Acção é a expressão do ser realizando-se, em união de simpatia e de amor. O filósofo não concebe o ser humano sorumbático, parado, esvaído na velatura de todas as penumbras, porque o homem sente, na própria carne, «o conflito entre o encanto do mundo presente e o misterioso atractivo de um mundo superior» ("L’Action", t. II, p.340). Acção e sabedoria completam-se, em Blondel, pois que, conforme a exclamação de Santo Agostinho, «fizeste-nos para Ti, Senhor, e inquieto anda o nosso coração até que descanse, em Ti». Ou esta, de uma densidade e concisão admiráveis: «Ama e faz o que quiseres.» A Acção, assim, constitui-se como emergência do horizonte fontal do amor.
De Louis Lavelle li dois livros, ainda era aluno da Faculdade de Letras de Lisboa, "De L’Ètre" e "De L’Acte", tentando, com eles também, preparar a disciplina de Ontologia, de que Oswaldo Market era o professor. Reli há pouco o "De L’Acte". Ele situa-se na linha reflexiva e subjectivista da filosofia francesa, inaugurada por Descartes. E assim a "reflexão" deverá instituir-se como método universal da filosofia e a metafísica deverá entender-se como «ciência da intimidade espiritual», dado que o fundamento da existência não o encontraremos no objecto, mas no sujeito. No entanto, é no acto que brota criativamente a percepção da existência, compreendendo-se então que ser é agir, uma vez que é no agir que eu me faço, fazendo. Só que o agir está em ligação íntima com o transcendente que o justifica.

(Continua)

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