sexta-feira, 20 de junho de 2008

Opinião: Gustavo Pires







A Fátima Foi ao Futebol

E, assim, desapropria-se o povo do seu sentimento de culpa, atribui-se-lhe auto-estima e dá-se-lhe um sentido de vida a partir do futebol. É uma questão de sobrevivência nacional.

Gustavo Pires (*)

A Dr.ª Fátima dos “Prós e Contras”, na passada segunda, foi ao futebol e o país, que não pensa noutra coisa, ficou a cismar que, afinal, isso da bola não é para qualquer um, porque tem coisa que se lhe diga.
Depois, dos eternos complexos da esquerda envergonhada que gosta de futebol mas, como tem vergonha de o dizer, desvaloriza-o e desprestigia-o, transformando-o numa actividade menor, folclórica, à margem da vida séria, que só serve para animar a alegria do povo, ao apetite sôfrego de uma direita neoliberal desavergonhada, com tiques reaccionários, por vezes até mesmo fascistas, fundamentalmente interessada em transformar o jogo numa vaca leiteira que é necessário mugir até à última pinga de leite, de uma maneira geral, o debate dos prós e contras ocorreu voluptuoso, lascivo e sensual, entre as pernas depiladas do Ronaldo e uma feminina virgindade perdida numa ida ao Maracanã.
Por volta da uma e meia, lá foi possível concluir que, afinal, o futebol é a festa do povo. E é festa porque nos momentos de sublime de euforia, todos os apaniguados, do operário fabril a cheirar a um incómodo suor inerente a quem do trabalho braçal faz o seu modo de vida, até ao administrador a cheirar ao sedutor KL, uma fragrância perfeita para o homem actual sempre bem com a vida, trocam abraços de alegria e exaltação na partilhada da vitória que pensam que é comum. Claro que também se concluiu que, para além daquela alegria fugaz, bem vistas as coisas, tal como acontece na celebração da missa, todos aqueles abraços e beijinhos, afinal, não resolvem coisíssima nenhuma.
E não resolvem coisíssima nenhuma, na medida em que, como afirmou Nietzsche, a moral cristã é uma moral dos fracos. Em conformidade, e tendo em atenção o super-homem que já é Ronaldo, os juízos de valor inerentes à festa desportiva devem ser realizados “para além do bem e do mal”, quer dizer, para além da festa quase religiosa em que o futebol se transformou, porque, no futebol, ninguém lá anda para “dar a outra face”.
Assim, a conclusão lógica foi a de que, quer se goste quer não, a coesão que o futebol nos dá também aliena uns contra os outros, muito embora tenha havido uma tentativa de jurisdicionar a palavra, assim como quem tira um coelho da cartola, decretando perante uma plateia meio embasbacada que a dita está ultrapassada. E está ultrapassada porque até houve quem tenha descoberto que, afinal, a alienação é saudável. E como é saudável, a função do futebol é mesmo essa, a de alienar o povo que bem o merece. E, assim, desapropria-se o povo do seu sentimento de culpa, atribui-se-lhe auto-estima e dá-se-lhe um sentido de vida a partir do futebol. É uma questão de sobrevivência nacional.
Deste modo, a capacidade de alienar as massas, através do futebol, passou a ser uma das maiores virtudes das políticas públicas do país, transformando-o numa espécie de marca. E atribuem-se lhe os predicados de uma marca, seja ela qual for, por exemplo, a de um sabonete, até porque só assim se pode compreender a lavagem ao cérebro a que o povo anda a ser sujeito à conta do futebol. O adepto passou a ser o protagonista. O cidadão o alienado. O futebol um instrumento da cultura popular que sublima as desgraças do país.
Por isso, é necessário saber vender o futebol, para melhor se poder vender o país. Porque, só assim o país pode sonhar sem ter medo de o fazer. Contudo, neste particular, o homem do marketing estava enganado. Os portugueses não têm medo de sonhar. Do que os portugueses têm medo é que o sonho acabe em pesadelo. Não foi isso que aconteceu no Vinte e Cinco do Quatro? Bastaram cerca de trinta anos para que o maior sonho português do século XX se transformasse num horrível pesadelo. Assim, os portugueses estão pessimistas. Eles não são pessimistas, estão pessimistas. Como tal, defendem-se, não através de um pessimismo doentio e absolutamente inútil, mas através do poder positivo do pensamento negativo. Quer dizer, eles sabem que têm de estar de pé atrás com os queridos líderes que os governam. Porque, de sonho em sonho, de um momento para o outro, podem ver-se com mais um campeonato da Europa ou do Mundo nos braços, ou até mesmo com uns Jogos Olímpicos, porque um TGV e um aeroporto já estão garantidos. Eles sabem que, após os abraços e os beijinhos da euforia dos golos que os nossos queridos líderes marcam, depois, quem paga a factura é sempre o mesmo. Eles estão de pé atrás à espera da primeira oportunidade de se chegarem à frente. A última oportunidade foi há mais de trinta anos. Faz tempo de surgir mais uma.
A Fátima pôs o país a discutir futebol mas, como dizia o outro, o futebol era o que menos interessava. O futebol era só a metáfora. A metáfora para uma cultura do impossível, na medida em que, neste país à beira mar desgraçado, o simplesmente possível já pouco importa. E como o simplesmente possível já sabe a pouco, os portugueses devem dedicar-se de alma e coração ao impossível. Trata-se de, como que num acto de mágica, fazer o futebol projectar-se no país. Quer dizer, futebolizar o país, pô-lo a marcar golos. É tão só uma questão de sabermos vender a nossa história. Depois, vendemos o país. Aliás, bem vistas as coisas, até já o começaram a vender o país a Bruxelas. A factura já começou a chegar.
A Fátima foi ao futebol mas não foi à bola. Quer dizer, não foi com os apaniguados do costume. Com aqueles que deixaram o futebol nacional chegar ao estado lastimoso em que se encontra, a vender semanalmente na comunicação social os amores, as traições, os penteados, as borbulhas e as depilações do Ronaldo. Apesar de tudo, desta vez, a Fátima foi melhor acompanhada. Diferentemente… Ela sabe o que nós queremos dizer…

(*) Com o Prof. António Cunha (FD-UP)

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