sexta-feira, 6 de junho de 2008

Opinião: Manuel Sérgio






O Maio de 1968 e o Desporto

A "sociedade do espectáculo" (poderíamos, hoje, dizer o mesmo) não passa de uma ditadura manhosa, acoitando sob a capa de uma linguagem balofa uma vontade imparável de manipulação e exploração.


Na década de 60, a França não era apenas o passado, no seu sentido militar, artístico, literário, filosófico e político – era também um país que se industrializava e timbrava, com emotividade profunda, por enterrar um mundo que, aos poucos, se extinguia, ao mesmo tempo que apontava a revolução, como a “conditio sine qua non” à mudança de paradigma, em todas as áreas da vida social. Em iracundo chinfrim, fértil em chalaça e tropos envenenados, estudantes, operários, artistas, intelectuais gritavam: «Ce n’est qu’un début, continuons le combat!». Havia, segundo todos eles, que transformar radicalmente a sociedade e a própria filosofia, já que o estruturalismo encanecera, deixara de despertar grandes emoções e o sujeito despontava, de novo, aventuroso, altivo e arremessado a todo o quadrante de recursos. A grande recusa da ordem social estabelecida, que “unidimensionalizava” as pessoas, já por ela haviam lutado os berlinenses de 1953, os húngaros e os polacos em 1956. Na capital francesa de 1968, lia-se, com avidez, a revista "Argument" dos dissidentes do PCF; e ainda a "Histoire de la Folie» de Michel Foucault e a "Critique de la raison dialectique", de Jean-Paul Sartre. Mas, sobre o mais, a "Société du Spectacle" de Guy Debord, o "Traité du savoir vivre à l’usage des jeunes générations" de Raoul Vaneigem e "L’Homme Unidimensionnel" de Herbert Marcuse. Com forte informação ideológica, os revoltosos desdenhavam dos métodos antigos, incluindo os leninistas, e de todas as frioleiras da religião, da política, da moral institucionalizadas. Ora, um babaréu crescente começou também a emergir do desporto. Na "Société du Spectacle", Guy Debord, fundamentando-se nas teses de Lucaks, desenvolve a ideia da transformação da mercadoria em espectáculo, através da reificação das pessoas. A "sociedade do espectáculo" (poderíamos, hoje, dizer o mesmo) não passa de uma ditadura manhosa, acoitando sob a capa de uma linguagem balofa uma vontade imparável de manipulação e exploração. Jean Baudrillard, na revista "Le Magazine Littéraire" (Abril-Maio de 2008), diz-nos que a crítica ao espectáculo descambou, então, num tal radicalismo que a racionalidade necessária a uma crítica desaparecia no meio do espalhafato de adjectivos sem conta e sem medida...
Mas o rio da contestação seguia o seu curso e chegou, de facto, ao espectáculo desportivo. Em França... porque, em Portugal, continuava a celebrar-se um feito inédito: Portugal, no Mundial de Inglaterra, classificara-se, no terceiro lugar! Ao mesmo tempo, há 42 anos atrás, ao Eusébio consideravam-no o melhor futebolista do mundo – ele que, um ano antes, fora distinguido pela "France Football", com a “Bola de Ouro”, prémio atribuído ao melhor jogador da Europa! No Portugal de Salazar, logo um acervo de cronistas, cuja vitalidade culminava no editorial doutrinário e político, medularmente estadonovista, entrou de proclamar que a selecção nacional de futebol desfazia os equívocos dos que descobriam, no Portugal de Salazar, um explorador de povos que, por força do nosso subdesenvolvimento, jaziam parados no tempo dos “Vizos-Reis”. Com efeito, entre os "Magriços", destacavam-se o Vicente, o Coluna, o Hilário e o Eusébio, africanos como os que são! Portugal era uno (garganteavam eles) do Minho a Timor – uno, acrescentemos nós, principalmente nos infortúnios, pois que a política de Salazar era de raízes profundamente presas ao integralismo reaccionário e fascizante e a um católicocentrismo que também levaria à fogueira o Giordano Bruno! «O ano de 1968 trouxe novos motivos de regozijo para os adeptos portugueses, como a presença do Benfica em mais uma final da Taça dos Campeões Europeus e a conquista da primeira “Bota de Ouro” (galardão atribuído ao melhor marcador europeu) pelo nosso futebol, graças à excelência de Eusébio” (João Nuno Coelho e Francisco Pinheiro, "A Paixão do Povo – história do futebol em Portugal", Edições Afrontamento, Porto, 2002, p.480). Em França, alguns números das revistas "Partisans" e "Quel Corps?" e ainda o livro "Sport, culture et répression", editado pela Maspero, apresentavam uma prosa repleta dos três M (Marx, Mao e Marcuse) e também uma personalidade original, inconformada e livre, para concluírem: o desporto moderno começou por ser uma prática de classe, dado que só a burguesia a podia entender como lazer ou recreação (ao proletário, que sobrevivia num quase anonimato, só o trabalho se lhe permitia); a constituição do desporto mundial é concomitante à consolidação do imperialismo (a Inglaterra exportou as práticas desportivas, com as mercadorias e o material de guerra); as classificações, nos campeonatos desportivos, são a consagração da desigualdade existente na sociedade capitalista; o resultado é, por seu turno, o prestígio do quantitativo, pois que o atleta, autêntico homem-máquina, vale o que valem as suas performances; o desporto é um aparelho ideológico do Estado e adormece, por isso, os espectadores à recusa da sociedade injusta estabelecida; no espectáculo desportivo, não há amadorismo, pois que só em regime profissional o espectáculo pode manipular e o espectador reificar-se; o desporto é um subsistema do sistema capitalista e os clubes, portanto, funcionam como firmas comerciais, em perene emulação no mercado desportivo; ao espectáculo desportivo não lhe interessam muitos praticantes, mas muitos espectadores; os escândalos que enodoam o desporto (como a corrupção, como a violência, como o doping, etc.) são meros aspectos da crise global do capitalismo, incluindo o capitalismo monopolista de Estado; o desporto de alta competição contribui à manutenção do capitalismo, reproduzindo e multiplicando as suas categorias: a competição, o rendimento, a medida, o recorde!
As ideias de Maio de 1968 fizeram do espectáculo desportivo veículo e intérprete do capitalismo e do capitalismo monopolista de Estado. Herbert Marcuse triunfou nelas. No prefácio da sua "Razão e Revolução", ele escreve: «Compreender a realidade significa compreender o que as coisas são, o que exige, por sua vez, a não aceitação da sua aparência (...). Também no capitalismo a verdade é o todo e o todo é falso» ... como acontece com o desporto actual!

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