sexta-feira, 6 de junho de 2008

Opinião: Gustavo Pires







À Mulher de César…

Quem ouviu as estórias de velhos dirigentes e alguns mais novos, ouviu certamente estórias de meninas, massagens e quejandas que fazem parte dum certo marialvismo que sempre envolveu o desporto.

À justiça, tal como à mulher de César, não lhe chega ser séria… O que se está a passar no mundo do futebol pode ser muito sério; contudo, para a generalidade dos observadores não deixa transparecer. O apaniguado mais ou menos imparcial o que vê é uma obstinada perseguição a um clube e ao seu líder, porque sabe que tudo aquilo de que são acusados sempre caracterizou a cultura do futebol. Uma cultura de confronto, em que a agonística dos actores em presença foi levada ao último grau. E sempre que foi necessário justificar a manobra, a simulação ou até a trapaça, a invocação do nome de Deus não deixou de ser utilizado sem qualquer pudor. Quando isto aconteceu perante a passividade pedagógica e até a anuência oportunista dos responsáveis, o que é que se podia esperar? Que o mundo do futebol fosse um mundo de anjinhos?
Quando Maradona, em 1986, marcou com a mão o golo que havia de apurar a Argentina para as semi-finais do Campeonato do Mundo (México), a generalidade dos adeptos das melhores famílias considerou a atitude do futebolista como um acto normal, que fazia parte do jogo na sua dinâmica de simulação e pantomina que sempre o há-de caracterizar. E a justificarem a trapaça afirmaram piamente que ela foi cometida pela “mão de Deus”.
Aqueles que acompanham o futebol nacional até há muito pouco tempo sempre ouviram dizer que o “plano estratégico” de qualquer treinador, que se prezasse, incluía uma rubrica para os árbitros. Depois, tal como diziam não acreditar, mas que havia bruxas ninguém tinha dúvidas. A contabilidade criativa, paralela e subterrânea no mundo do desporto em geral e do futebol em particular sempre existiu, toda a gente sabia que era ilegal mas todos a aceitavam. Tudo era feito por amor ao desporto, ao clube, ao futebol e até à pátria. Quem ouviu as estórias de velhos dirigentes e alguns mais novos, ouviu certamente estórias de meninas, massagens e quejandas que fazem parte dum certo marialvismo que sempre envolveu o desporto.
O que é facto é que a generalidade dos políticos viveu bem com esta situação. E na maior das hipocrisias, políticos, técnicos e praticantes juravam que o desporto era educação e um espaço de virtudes. Contudo, o desporto, em muitas situações, com o beneplácito de dirigentes desportivos e políticos, foi bem um antro de perversão. Era o jogo total. Tudo se relacionava com tudo e o jogo integrava o próprio jogo que era a vida. Parafraseando David Miller, que escreveu a biografia de Antonio Samaranch, diremos que “no mundo existem seis idiomas universais: dinheiro, política, arte, sexo corrupção e desporto. O curioso é que o desporto reúne elementos de todos os outros.
Até aos anos oitenta, de uma maneira geral, o jogo desenrolou-se num mundo próprio, num mundo do faz de conta em que as questões económicas eram de somenos inconstância pelo que, no fim, mais ou menos, todos se divertiam. Entretanto, o mundo mudou. De repente apareceu a televisão. O desporto entrou pelas casas adentro. E o dinheiro, assim como que por magia, começou a entrar a rodos no sistema. Com o dinheiro chegaram os economistas e os especialistas em marketing, os gestores financeiros, de carteiras, de projectos e os famigerados empresários. O jogo deixou de ser a feijões e, como tal, o conflito de interesses não se fez esperar. Claro que os conflitos trouxeram a reboque os advogados que se encarregaram de defender as partes em confronto. Depois, vieram os juristas, era necessário haver alguém que explicasse à generalidade dos apaniguados as subtilezas do jogo. Quer dizer que aquilo que fazia parte do jogo passou a ser considerado crime e a ser julgado pelo emaranhado das leis que, com mais ou menos contradições, entretanto tinham sido produzidas.
Quer dizer que o paradigma do jogo mudou sem que a generalidade dos políticos se apercebesse. E o país papalvo deu por si a pensar que o futebol nacional era um antro de corruptos que era necessário meter na cadeia o mais depressa possível.
Contudo, perante o que está a acontecer é necessário perceber que enquanto andam entretidos atrás de uns tantos pilha-galinhas que para o bem e para o mal alimentaram o jogo e, independentemente de alguma alienação fascista a todos os títulos condenável, transformaram o futebol na indústria de maior êxito nacional. Os verdadeiros problemas que desgraçam o país e o colocam na cauda da Europa, com pobreza e assimetrias sociais absolutamente obscenas, passam completamente despercebidos. Depois, quando o Zé acordou de manhã e leu nos jornais que se pagaram 800 milhões de euros por um produto que podia ter custado quatro ou cinco vezes menos, e, depois, vê à noite na televisão a cara dos responsáveis que participaram na jogatana, vê-se como figurante de um filme ao estilo da “grande golpada”.
Por isso, o pagode desconfia. Desconfia quando vê o país gastar energias atrás de bodes expiatórios que, a terem feito qualquer coisa, não fizeram mais do que aquilo que os outros sempre fizerem, porque tudo aquilo de que são acusados fazia parte do jogo e da cultura vigente. Mas o país lamenta que tudo tenha acontecido a partir de uma luta fratricida sem quartel e sem qualquer sentido em que, bem vistas as coisas, são todos responsáveis e ninguém devia ter a pouca vergonha de atirar a primeira pedra. O país lastima ainda tantos anos de olímpico desleixo por parte de um poder político e desportivo que é tanto ou mais responsável do que aqueles que agora impávido e sereno vê condenar.
As agremiações desportivas tal como as “sociedades primitivas”, por princípio, recusam toda e qualquer subordinação ao seu líder sem que o líder tenha de deixar de existir e exercer o poder que lhe compete. São os membros da agremiação e as suas teias de poder que controlam o líder que acaba por ficar muito limitado no que diz respeito à imposição da sua vontade. No entanto, ele sabe que não a pode deixar de aplicar, sob pena de se perder a si mesmo. É esta realidade que é necessário atender antes de se consumarem “julgamentos” que, aos olhos da generalidade dos cidadãos, não são senão uma maneira diferente de fazer precisamente a mesma coisa que pretendem condenar.
É que a mulher de César tem mesmo que parecer séria. E ao país não lhe chega ser só sério. Tem de parecer…

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