sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Opinião — Gustavo Pires



Um Estado Dentro do Estado


Gustavo Pires

Um dirigente do Comité Olímpico de Portugal (COP), afirmava-nos recentemente que deveria haver poucos comités olímpicos por esse mundo fora, que tivessem as condições financeiras do COP. E tinha razão. Por nós, há muito tempo que vimos a dizer que o principal problema do desporto em Portugal é dinheiro a mais e demasiado fácil. Senão vejamos.

Como já tivemos a oportunidade de referir, em 2005, o COP assinou com a tutela um protocolo em que recebeu do Estado para a participação nos Jogos Olímpicos de Beijing a módica quantia de 14 milhões de euros. Segundo a “Sportbusiness” (16/11/2004) o Comité Olímpico Australiano (COA) para a mesma participação, tem como orçamento 13.7 milhões de dólares. Ora, isto significa que, à cotação actual, o COP recebeu 20 milhões de dólares o que é quase o dobro daquilo que gasta o COA. Se considerarmos ainda que a Austrália ficou em quarto lugar nos Jogos Olímpicos de Atenas, logo a seguir aos EUA, à China e à Rússia, com 17 medalhas de ouro, 16 de prata e 16 de bronze, enquanto que Portugal ficou e sexagésimo lugar com duas de prata e uma de bronze, podemos verificar quanto a vida tem sido fácil e agradável para os dirigentes do COP.

O dinheiro que o COP recebe do Estado, sai dos bolsos dos contribuintes. Por isso, o mínimo que se lhe podia exigir era a publicação de um relatório anual divulgado no seu site, acerca da utilização dos dinheiros recebidos não só do Estado, como das empresas. Do Estado pelos motivos óbvios. Das empresas porque, em primeiro lugar, elas beneficiam de vantagens fiscais dos apoios que concedem, em segundo, porque, muito provavelmente, também gostariam de avaliar a maneira como o seu dinheiro é dispendido.

Hoje é claro que o “Livro Branco do Desporto” pela Comissão Europeia, veio pôr um freio nos desvarios do Movimento Desportivo Europeu. Este, há muito, pretende constituir-se como um Estado dentro dos próprios Estados, com o objectivo de proteger não só uma espécie de economia paralela a funcionar à margem não só do controlo dos Estados como também das normas institucionalizadas a nível do espaço europeu. Se acrescentarmos que o designado Modelo Europeu de Desporto, hoje funciona em muitas circunstâncias através de processos que levantam muitas questões éticas e morais como são aquelas que envolvem a vida económica e financeira de muitos clubes de futebol na Europa, podemos perceber a oportunidade do “Livro Branco”.

E a prová-lo aí está a recente atitude de Joseph Battler ao pretender vergar o governo espanhol aos ditames da FIFA, num assunto de política interna do país. A atitude do presidente da FIFA mostra bem aonde os Governos europeus deixaram chegar a arrogância do chamado Modelo Europeu de Desporto, que sem qualquer pudor, a nível europeu, entra pelos países adentro para impor as suas regras, e a nível dos países, entra pelos governos adentro para impor as sua vontade. Vontade esta, a maioria das vezes, de sabor corporativo que nada tem a ver com os reais interesses do desporto e dos seus praticantes.

E o problema é que são os próprios governos a financiar as organizações desportivas que à custa do dinheiro dos contribuintes se viram, por meros egoísmos corporativos, contra os interesses dos próprios Estados e da generalidade dos cidadãos. E o principal argumento que usam é o de que o desporto não é nem uma actividade económica nem uma actividade política, pelo que necessita de um tratamento especial. E precisa, só que não é o que eles querem.

No que diz respeito ao à economia o argumento é falacioso na medida em que se consultarmos qualquer manual de economia, chegaremos facilmente à conclusão de que o desporto não é uma actividade económica, como nenhuma actividade o é, talvez com a excepção das actividades financeiras (banca, seguros, impostos e pouco mais). O desporto é uma actividade multidicisplinar, na qual, como em tantas outras actividades multidisciplinares, a economia está presente como está o social, o político, o educativo, o entretenimento, etc. O problema é que, nos tempos que correm, os interesses económicos subvalorizam todos os outros, e os dirigentes desportivos querem perante a Comissão Europeia, em benefício próprio, esconder essa realidade.

Quanto ao desporto não ser uma actividade política só por desfaçatez se pode negar tal evidência. E fazê-lo da maneira que o presidente do COP o fez ao Diário de Notícias (15/2/08) cai-se no domínio do inaceitável, sobretudo vindo de alguém que devia demonstrar uma cultura e um conhecimento em matéria de política desportiva, acima do lugar comum. Dizer que “a política emporcalha tudo quanto toca...”, com o objectivo de “salvaguardar”, como diz Manageiro Costa, um “desporto bacteriologicamente puro”, sobretudo quando depois se aceita receber comendas e condecorações da própria política, revela uma falta de senso que já não se pode admitir a um Presidente do COP, a quem se exige um mínimo de coerência. Dizer que “nada ficou” do boicote aos Jogos de Moscovo é de uma miopia a toda a prova. Basta pensar que o regime Soviético caiu menos de dez anos depois, dos Jogos, quando os relatórios de prospectiva política previam a queda da URSS para lá de 2020. E os Jogos de 1980, na sua quota parte contribuíram para isso. Tal como os Jogos de Seul (1988) contribuíram para provocar mudanças radicais do ponto de vista da democratização do regime na Coreia do Sul.

Por cá, o Regime Jurídico das Federações Desportivas está “debaixo de fogo” por parte das Federações Desportivas lideradas pelo COP. Laurentino Dias, sem uma estrutura técnica com uma liderança minimamente credível para dialogar com o Movimento Associativo, está sozinho perante uma estrutura com muitos anos de experiência em matéria de contestação da tutela. O dinheiro dos contribuintes é fácil até porque os pareceres dos juristas devem custar muito dinheiro. E, depois, dizem que o desporto não tem nada a ver com a política! Entretanto, aos olhos do comum dos cidadãos eles já conseguiram inverter o sistema. Como no passado, já não perguntam o que é que podem fazer pelo País. Eles, agora, estão fundamentalmente interessados em saber o que é que o País pode fazer por eles.

Esperamos que Laurentino Dias se aguente, muito embora, em nossa opinião, ele hoje já seja um dos grandes responsáveis por toda esta desgraçada situação a que o desporto chegou. Há quatro anos ele estava do lado da solução. Hoje, já faz parte do problema. Não tarda, vai embora. É mais um a acrescentar ao currículo dos nossos olímpicos dirigentes.

Sem comentários: