sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Opinião — Manuel Sérgio







Manuel Sérgio



O pensamento ético
contemporâneo
e o Desporto (III)

Sem ética, o espectáculo desportivo pode transformar-se num espaço de violência e de corrupção, dada a alta competição em que decorre.



Enganam-se os que pensam que os atletas são singelos títeres, nas mãos dos dirigentes e dos técnicos, ou das leis sem espírito (lembram-se do “Espírito das Leis”, de Montesquieu?). O “Homo Sapiens-Sapiens” é um ser que sabe que sabe e sente, por isso, a necessidade imperiosa de criticar, isto é, de saber, em profundidade, quem é, onde está e para onde vai. Posto isto, podemos adiantar que não é o desporto o novo ópio do povo, o ópio do povo é o desporto institucionalizado, que demasiadas vezes reduz as pessoas a coisas e os sujeitos a objectos. Já há 96 anos, Jaime Cortesão alertava, em “A Águia” (Outubro de 1912) que «não é o regime, nem a agricultura, nem a indústria, nem as finanças que verdadeiramente estão em crise – o que em Portugal, há alguns séculos, está em crise é o Português». Enfim, há que preparar também as pessoas para que as estruturas se transformem.
Posto isto, propõe-se:

1. Que o desporto escolar inclua, no conteúdo das suas matérias, não a gramática epistemológica das ciências empírico-formais, mas a das ciências hermenêutico-humanas, onde toda a objectualização é ilegítima. E, por isso, onde uma cultura anti-dualista e anti-colonialista e anti-imperialista seja essencial e fundante.
2. Que o ensino universitário do desporto assuma, sem subterfúgios, um paradigma decorrente das ciências hermenêutico-humanas e onde o agente do desporto, como ser-de-relação, se estude como factor de desenvolvimento da pessoa, do grupo, da sociedade.
3. Que a teoria e metodologia do treino (que continua a esquecer, tendo em conta até o rendimento, a racionalidade comunicativa, adiantada por Habermas) não esqueça, ao visar a complexidade humana, os aspectos éticos da prática desportiva. Sem ética, o espectáculo desportivo pode transformar-se num espaço de violência e de corrupção, dada a alta competição em que decorre. Quando o treinador Jorge Jesus sustenta que «o “fair-play” é uma treta», acentua que a ética movimenta-se com dificuldade num desporto que reproduz e multiplica as taras do economicismo triunfante.
4. Que se reconheça, no atleta, o sujeito ou a pessoa, com um valor incomensurável, em relação ao valor de todos os campeonatos e taças das federações internacionais ou dos Jogos Olímpicos. É o praticante a origem e o fundamento de toda a significação do Desporto. A expressão “jogo de vida ou de morte” deverá erradicar-se do vocabulário desportivo. A morte do ser humano é a morte do próprio Desporto.

E. Levinas, no seu “Autrement qu’être ou au-delà de l’essence”, acolhe com bons olhos a desconstrução do humanismo actual, pois este, ao rejeitar o Absoluto, «não é suficientemente humano». Direi o mesmo do desporto actual que, ao articular-se absolutamente fora do sujeito, rouba ao praticante o estatuto de “primeira pessoa”, para transformá-lo em mera unidade intercambiável. A própria consciência reflexa não é mais, para os novos humanistas, do que o resultado do processo de interiorização de uma ordem que lhe é totalmente exterior. Só que o novo humanismo, ao diluir o ser humano num mundo de estruturas, põe o Desporto em questão. Este é um tema que nunca vi tratado pelas instâncias internacionais que se ocupam desta problemática. Falam tanto de ética desportiva, sem darem conta se ela é possível com as estruturas onde o próprio desporto assenta.

Sem comentários: