sexta-feira, 27 de junho de 2008

Opinião: Manuel Sérgio







Para um novo paradigma
do saber... e do ser! (II)

Quanto mais se teoriza e pratica o futebol, o conceito de intencionalidade surge imediatamente. Não há movimento sem sentido, na prática desportiva.


Em linguagem actual, poderemos acrescentar que, assim como as estruturas dissipativas (Prigogine) são sistemas abertos, dizendo que a vida possui uma ilimitada capacidade de inovação, assim também o acto apresenta um ímpeto criador de infinitas virtualidades, se se alimentar do diálogo com Deus e com o meu semelhante. Em "De L’Acte", Lavelle não deixa dúvidas: «L’histoire de ma vie c’est l’histoire de mes relations avec les autres.» Mas é no seio do Absoluto, que é também de uma profunda exigência relacional e dialógica, que o acto tem eficácia e deixa um largo e luminoso rasto de beleza moral. É-nos lícito concluir, assim, após a leitura de Blondel e Lavelle, pela íntima relação entre o movimento de aprofundamento de si e o de transcendência, em direcção à alteridade. Volto ao livro de Luís Freitas Lobo: «Para o Rei (Pelé), o futebol era mais do que um jogo, era o filme da vida, como descreve este diálogo, nos idos anos 60, com Nilton Santos, lateral esquerdo dos inolvidáveis escretes canarinhos dessa época. “Nilton, o que se passa pela cabeça da gente, na hora de uma jogada?”, pergunta Pelé. “Tem nego aí que não passa nada”, respondeu Nilton. “Pois na minha passa um filme de longa metragem”, confessa Pelé» (p. 89). Quanto mais se teoriza e pratica o futebol, o conceito de intencionalidade surge imediatamente. Não há movimento sem sentido, na prática desportiva.
O Padre Joaquim Cerqueira Gonçalves, antigo professor na Faculdade de Letras de Lisboa, costumava dizer nas aulas que «se a historicidade é inerente à filosofia, tal não é óbvio para a ciência, embora seja mais fácil uma história da ciência. A filosofia não prescinde do passado; a ciência vive renegando o passado» (Departamento de Filosofia e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, "Poiética do Mundo – Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves", Edições Colibri, Lisboa, 2001, p. 81). Por isso, nalgumas das grandes colunas, que venho de referir, onde assenta a filosofia actual, desde o platónico Santo Agostinho, o aristotélico São Tomás de Aquino e Descartes, passando por Marx, Nietzsche e Freud e chegando a Husserl, Heidegger, Sartre e Ricoeur a ideia de acção está presente. A filosofia recusa pensar e pensar-se, sem este tema. No entanto, «a acção seria um luxo desnecessário, uma interferência caprichosa, nas leis gerais do comportamento, se os homens fossem interminavelmente repetições reprodutíveis do mesmo modelo (...). A pluralidade é a condição da acção humana, porque todos somos irrepetíveis, em relação aos homens do passado, do presente e do futuro» (Hannah Arendt, "The human condition", University of Chicago Press, 1958, p. 8). No entanto, por que há-de o acto (ou a acção) referir-se principalmente, na modernidade, ao "animal laborans" ou ao "homo faber"? Toda a modernidade nos chega impregnada de um fazer que visa apropriar-se da natureza e conferir ao económico um lugar determinante, na História. Ao mesmo tempo que um pensamento crítico, vigoroso e desempenado, nasceria e ganharia maturidade, na Europa do século XVIII, sob a inspiração de John Locke, como bandeira ao vento de uma grande paixão de liberdade. Mas uma contradição insanável surgia também, numa dialéctica entre as ideias e a história: o eixo do pensamento deslocou-se gradualmente do homem para a produção, do sujeito para o objecto, da pessoa para a coisa. O grande empresário subalterniza o trabalhador e diviniza a produção e o lucro. E as ideias de liberdade-igualdade-fraternidade não se cumpriram e aparecem aos olhos do trabalhador como palavras venerandas, esvaziadas de qualquer sentido ético e social. As leis económicas, concebidas pelo liberalismo, confundem, como vimos acima, pessoas com coisas e as bases ideológicas da liberdade-igualdade-fraternidade confinam-se a pura retórica. O português Miguel Bombarda (1851-1910), professor de Medicina, lastimava a irracionalidade de uma endémica desigualdade social: «A miséria é o espectro horrífico das sociedades humanas. A terra produz o quintuplo das necessidades do homem e morre-se de fome. O sol é a alegria e o contentamento e vive-se em tocas infectas na eternidade da sombra, e trabalha-se em antros tenebrosos, na eternidade da fadiga» ("A Consciência e o Livre Arbítrio", Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1902, pp. 361-362). E deplorava que a filosofia do seu tempo se resumisse «a ser o receptáculo das elucubrações, sobre a essência das coisas, sobre os primeiros princípios» (idem, ibidem, p. 45) e denuncia «esses filósofos da palavra» a quem «não há facto científico que lhes mereça respeito» ("A Ciência e o Jesuitismo", Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1900, p. 28). Também o desporto é ciência, mas... ciência humana! E, se não é ciência exacta, há que preparar o praticante para a imprevisibilidade do desporto. E para dar sentido ao inesperado...
2. "Ama e faz o que quiseres", de Santo Agostinho, diz-nos que o projecto último da acção, ou do acto, deve ser o amor. Luc Ferry criou, a propósito, uma paráfrase: «age como se amasses» ("L’Homme-Dieu ou le sens de la vie", Grasset & Fasquelle, Paris, 1996, p. 121). Num caso e noutro, o amor não é estranho ao imperativo moral. Mas não é verdade que as ideias que germinam, hoje, na filosofia, se iniciaram, como Foucault o lembra, em Marx, Nietzsche e Freud ("Nietzsche", Ed. Minuit, Paris, 1964)? E não é verdade também que, para eles, tudo é interpretação, já que não há signos primeiros? De facto, não há signos primeiros, mas interpretações primeiras, mesmo nas cartilhas doutrinárias (até o Freud, ao lançar o paciente, para um divã, dá primazia à interpretação). Após a derrocada dos velhos triunfadores, chegou à filosofia, com os “mestres da suspeita”, a incerteza. Mas também, na física, o que era clássico se desmoronava. «Tanto ao nível macroscópico, como ao nível microscópico, as ciências da natureza libertaram-se de uma concepção estreita da realidade objectiva, que nega a novidade e a diversidade, em nome de uma lei universal imutável» (Prigogine, I.; Stengers, I.: "A Nova Aliança", UnB, Brasília, 1984, p.209) Isto é, somos parte de um universo não-linear, não-previsível, complexo, caótico, criativo e pluralista. E a filosofia passou a viver também da contingência, da finitude, da crise. E sem o derrame descritivo de quem da ordem e da objectividade julga chegar inevitavelmente à verdade. Não é precisa muita verve, nem ministrar a ninguém «o santo sacramento da palavra», de que nos fala Unamuno, para dizer que um pensamento novo sacode o torpor hibernal das ciências e da filosofia, clássicas: o pensamento sistémico e complexo! E sem o clima tépido e morno das coisas fáceis, pois só se ancorou a ideias moças e originais, após revoluções científicas (Kuhn), ou rupturas epistemológicas (Bachelard), ou cortes epistémicos (Foucault), ou revoluções paradigmáticas (Morin). O modo objectivo, certo, determinista de observar o mundo que sobrenadava, na física clássica, foi posto em causa pela mecânica quântica que, através do mundo microscópico, nos ensina que o mundo não é o que ingenuamente vemos, na nossa vida quotidiana. A certeza e a objectividade são necessidades do sujeito, não quaisquer propriedades da matéria. A certeza inamovível decorre da ideia de um universo fiável, próprio de uma concepção mecânica do universo. Por outro lado, a separação sujeito-objecto franqueava-nos um mundo objectivo, no qual a subjectividade do sujeito não interferia nas leis por que o mundo se ordenava. A mecânica clássica e as suas concepções deterministas eram defendidas, com arreigada convicção, por muito "vir probus" que estudara Descartes, Newton, Locke, Kant e lera, com irresistível simpatia, os iluministas, designadamente Voltaire.

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