sexta-feira, 23 de maio de 2008

Opinião: Manuel Sérgio







A Vontade de Acreditar

A passagem de uma moral estática a uma moral dinâmica encontro-a em Jesus: na passagem de uma moral que se fundamenta na Razão a uma moral que se fundamenta no Amor, onde a Razão se encontra integral mas superada.

Há quem sustente que Malraux afirmava que «o século XXI será religioso, ou não será». Se não descambo em erro grave, hoje é cada vez maior o número de pessoas que defende um projecto ateu de vida – um projecto laico e de profunda ética e da mais autêntica espiritualidade, mas... dispensando Deus! As religiões não têm o monopólio da moral. E filósofos há que afirmam que «o século XXI será laico, ou não será». O Espírito do Ateismo ("L’Esprit de l’atheisme. Introduction à une spiritualité sans Dieu", Albin Michel, 2006) de André Comte-Sponville e o Tratado de Ateologia ("Traité d’athéologie", Grasset, 2005) de Michel Onfray, dois sucessos editoriais, defendem, cada qual à sua maneira, que Deus é uma ideia perfeitamente dispensável, no mundo da ética e da moral. André Comte-Sponville, de 56 anos de idade, considera-se um aluno dos “mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche e Freud), assumindo por isso o desafio de ajudar à construção de uma metafísica materialista, de uma ética humanista, de uma espiritualidade sem Deus, procurando criar assim “uma sabedoria para o nosso tempo”. Segundo o mesmo filósofo, o ateu nascituro abraçará a mensagem judaico-cristã, sem necessitar de invocar o nome de Deus. Demais, o nosso tempo testemunha os crimes mais hediondos, praticados por fanáticos religiosos que, portanto, se dizem crentes e tementes a Deus. Comte-Sponville proclama-se um “ateu cristão”, ou seja, aceita a moral cristã, sem descobrir em Cristo o Filho de Deus. É o filho do carpinteiro e possivelmente a maior figura da História, mas sem quaisquer atributos divinos.
Mas é a altura de lermos boa parte da tese de André Comte-Sponville: «Os três monoteismos, animados pela mesma pulsão de morte genealógica, partilham um conjunto de taras idênticas: o ódio da razão e da inteligência; o ódio da liberdade; o ódio de todos os livros em nome de um só; o ódio da vida; o ódio da sexualidade, das mulheres e do prazer; o ódio do feminino; o ódio do corpo, dos desejos, das pulsões. O judaismo, o cristrianismo e o islão defendem: a lei como fé, a obediência e a submissão, o gosto da morte e a paixão pela outra vida, anjos assexuados e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a mulher que se realiza unicamente como esposa e mãe, o dualismo corpo-alma. Que o mesmo é dizer: uma vida crucificada e o nada divinizado.» Michel Onfray, de 49 anos de idade, é radical: é “um ateu não cristão”, recusando mesmo a bondade da mensagem judaico-cristã. A ateologia é uma nova disciplina que supõe a mobilização de várias ciências, tais como a psicologia, a psicanálise, a arqueologia, a linguística, a história, etc. E uma filosofia que se fundamente e seja a cúpula de «uma física da metafísica, uma real teoria da imanência, uma ontologia materialista». A conquista da tolerância, o surgimento da democracia, a libertação da mulher acontecem, apesar das religiões monogâmicas. E os mártires da liberdade de pensamento? Como esquecer as Cruzadas e a violência que se oculta por detrás dos Descobrimentos? E Copérnico, asseverando que o Sol não roda à volta da Terra? E Giordano Bruno, queimado em praça pública, porque tentava provar que o universo é infinito? E Galileu, obrigado a retractar-se, por fazer suas muitas das teses de Copérnico?... Enfim, o rol de mártires da liberdade, mortos, ou presos, ou condenados ao silêncio e ao desprezo público, pelas religiões monoteistas (ocorrem-me, neste passo, Espinoza, Teilhard de Chardin, Hans Kung, Leonardo Boff, Mário de Oliveira, Felicidade Alves e o actual terrorismo dos fundamentalistas islâmicos) é tão grande que me fico por aqui, não recordando as encíclicas papais onde o próprio regime democrático é considerado contrário à vontade de Deus. É possível encontrar a vontade de um Deus, infinitamente bom, em tantos pecados contra a humanidade?
Há necessidade de uma espiritualidade ateia? Estes dois filósofos dizem que sim e apontam a possibilidade da sua construção, já que a espiritualidade das religiões monoteistas é fixista, retrógrada, fascizante. Permitam-me que acrescente algumas nótulas da minha autoria: todos nós somos viajantes a caminho do Absoluto. O sentido da vida é a trancendência, ou seja, a capacidade de transcender e transcender-me, em pleno contexto de solidariedade e justiça social, já que não me transcendo senão em grupo (e quanto maior for o grupo tanto melhor). Jesus deixou-nos um mandamento: «Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos.» Comte-Sponville, porque não acredita n’Ele, confunde Deus com o Bem, a Verdade, a Beleza. Mas Jesus, ao dar-nos este mandamento diz-nos, implicitamente, que o ser humano não é um retórico num mundo feito, mas um ser práxico num mundo por fazer. Por isso, tanto André Comte-Sponville como Michel Onfray, não acreditando embora em Deus, seguem o grande mandamento que Jesus nos deixou — mandamento donde nasce uma efectiva e concreta solidariedade e não a “solidariedade” abstracta, ineficaz e longínqua do neoliberalismo e de todas as ditaduras mascaradas de socialismo, através de um capitalismo de Estado. Li, com atenção e respeito, André Comte-Sponville e Michel Onfray e continuo a acreditar na missão salvífica de Jesus de Nazaré. A passagem de uma moral estática a uma moral dinâmica encontro-a em Jesus: na passagem de uma moral que se fundamenta na Razão a uma moral que se fundamenta no Amor, onde a Razão se encontra integral mas superada. Continuo com a vontade de acreditar no mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”. Amar... que não é filosofar unicamente!
Tenho vontade de acreditar em Deus e não em deuses. Chamem-se eles Ricardo Quaresma, Cristiano Ronaldo, Robinho, Van Nistelrooy, Didier Drogba, etc., etc. Estes têm lesões em demasia e os que loucamente os aplaudem são pessoas de pensamento vacilante, porque perderam a certeza da verdade; pobres de vida interior porque excessivamente solicitados pela exterioridade do trabalho e do estilo altamente competitivo da vida; vítimas de falsas receitas de felicidade. Gosto muito de futebol, mas não me quero esvaziado de interioridade e incerto quanto ao meu destino essencial.

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