sexta-feira, 23 de maio de 2008

Opinião: Gustavo Pires






China: O Feitiço e o Feiticeiro

Hoje, as autoridades chinesas ao proclamarem que o desporto nada tem a ver com a política esquecem-se que no passado, em defesa dos seus direitos, também elas utilizaram o feitiço do desporto para resolverem questões políticas.

A generalidade dos líderes do Movimento Olímpico, durante o século XX, sempre procuraram produzir um discurso “politicamente correcto”, em que o desporto foi invariavelmente considerado uma actividade asséptica, desenvolvida à margem da sociedade, sem qualquer contacto com as realidades mais comezinhas do mundo, da vida e da política. Contudo, segundo os princípios fundamentais do Olimpismo, expressos na Carta Olímpica:
• O Olimpismo procura criar um modo de vida baseado no prazer do esforço, no valor educacional do bom exemplo e no respeito por princípios éticos universais fundamentais.
• O Olimpismo tem por objectivo colocar o desporto ao serviço de um desenvolvimento harmonioso do homem, com a perspectiva de promover uma sociedade pacífica preocupada com a preservação da dignidade humana.
• A prática do desporto é um direito humano.
• Cada indivíduo deve ter a possibilidade de praticar desporto, sem discriminação de qualquer tipo.
• A organização, administração e gestão do desporto deve ser controlada por organizações desportivas independentes.
• Qualquer forma de discriminação com respeito a um país ou pessoa baseada na raça, religião, política, género ou outra é incompatível com a pertença ao Movimento Olímpico.
Apesar da assunção clara da defesa dos Direitos do Homem, da dignidade e do desenvolvimento humano, que expressam uma concepção política da vida, no meio do calor provocado pelo percurso da Tocha Olímpica a caminho dos Jogos Olímpicos de Beijing (2008), muitos dirigentes desportivos insistem em proferir as mais diversas proclamações acerca da incompatibilidade do desporto com a política, entre elas a do chefe da missão portuguesa aos Jogos de Beijing que declarou à TSF: «nós somos desportistas, cumprimos a Carta Olímpica e deixamos a política para os políticos» (TSFonline, 2/4/08).
O problema é que afirmações deste tipo que objectivamente transformam os atletas em “bestas esplêndidas” – uma ma expressão cunhada por Manuel Sérgio – não são singulares. Elas fazem parte de uma cultura caracterizada por uma certa menoridade política que, na tradição corporativa do desporto, os dirigentes sempre atribuíram aos atletas, pelo que até se sentem no direito de falar em nome deles. E eles, na sua juventude, não sabem que há muito que a história nos ensinou que todo o desporto organizado caminha tendencialmente para um modelo fascista. E, depois, para a sua própria implosão…
Os dirigentes do Movimento Olímpico sempre foram pródigos em declarações que pretensamente visam afastar o desporto de qualquer contágio político.
Por exemplo, Vicente Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), classificou como “oportunistas” os que defendem um boicote aos Jogos Olímpicos de Beijing (2008), devido às questões do Tibete e dos Direitos Humanos na China (LUSA, 27/4/08). Pelo seu lado, Carlos Arthur Nuzman presidente do Comité Olímpico Brasileiro (COB), após o encerramento da reunião de trabalho da Comissão de Coordenação dos Jogos Olímpicos Beijing, afirmou que «boicotar os Jogos, como pretendem fazer dirigentes da Alemanha, Polónia e República Checa, é um desrespeito aos atletas que vão participar da competição» (GLOBOESPORTE, 3/4/2008).
Apesar destas proclamações mais ou menos “oportunistas”, o que é por demais evidente, para todos aqueles que se deram ao trabalho de estudar o percurso de vida do Comité Olímpico Internacional (COI), bem como as atitudes e comportamentos daqueles que protagonizaram a sua liderança, é que sempre existiu uma relação muito íntima entre o desporto e a política, determinada por diferentes interesses, diferentes objectivos, diferentes aliados e diferentes concepções do mundo.
De resto, quando, por exemplo, hoje, as autoridades chinesas, perante a aflição que os movimentos de defesa dos Direitos Humanos lhes estão a causar, afirmam alto e bom som e, claro, porque lhes convêm, que o desporto nada tem a ver com a política, estão a ignorar a realidade histórica que ao longo de mais de cem anos sempre envolveu o Movimento Olímpico. Mas esquecem-se também, que desde a fundação, em 1949, da República Popular da China (RPC), os dirigentes chineses sempre utilizaram de forma premeditada o desporto como um instrumento político na sua diplomacia internacional em defesa dos seus legítimos interesses. E de tal maneira afirmaram este seu direito que, em 1957, chegaram a um ponto em que, por motivos meramente políticos, pura e simplesmente abandonaram o COI bem como a generalidade das organizações desportivas internacionais. O próprio primeiro-ministro Zhou Enlai (1898-1976) envolveu-se sobremaneira na questão Olímpica, ao tempo coadjuvado por He Zhenliang, o grande responsável pela sucesso da candidatura chinesa à organização dos Jogos Olímpicos de Beijing (2008). Hoje, as autoridades chinesas ao proclamarem que o desporto nada tem a ver com a política esquecem-se que no passado, em defesa dos seus direitos, também elas utilizaram o feitiço do desporto para resolverem questões políticas. Agora, o feitiço virou-se contra o feiticeiro independentemente das proclamações dos nossos e dos outros olímpicos dirigentes.

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