sexta-feira, 9 de maio de 2008

opinião: Manuel Sérgio






Para um socialismo
do século XXI (IV)

Por que não um socialismo, fora dos esquemas habituais do Logos, da Lei, do Significante? A Origem nunca é a Ordem.


4. Impor mordaças ao povo, para falar, horas intermináveis, em seu nome, é a mais abjecta das dominações; instituir a censura, alegando que se trata de meio de autodefesa contra “mercenários”, a soldo de potências estrangeiras, e não ver nela tão-só uma profilaxia provisória, alargando-a, indefinidamente, a qualquer escritor ou jornalista e a todos os órgãos da Comunicação Social; um governante que vive do que fez, em emotiva consonância com os interesses do seu país, e tudo sacrifica a esse evento de forte carga patriótica, localizado e datado, como se de uma aparição divina se tratasse – nada disto me parece próprio de um socialista, mas apenas de uma pessoa infeliz que obriga os seus concidadãos a participarem da sua infelicidade. O socialismo, em que acredito, há-de definir-se, singularizar-se, principalmente, como democracia participativa, economia de necessidades e cultura solidária e deverá ser construído, com o destemor do risco, por todos os cidadãos, proletários ou não. O “novo socialismo” não pode estar de acordo com certas situações a que o velho socialismo contribuiu, ardorosamente, ao afirmar-se representante do proletariado tão-só, dado que em socialismo a extinção das classes é inevitável.
De facto, ao novo socialismo corresponde uma economia nova, que deverá orientar-se para a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, para uma relação íntima entre a propriedade privada e a propriedade social e para o surgimento de “sujeitos económicos”, isto é, de produtores e consumidores, capazes de participarem nos processos de decisão e que não esperam, de mão estendida, que seja a gula do capital ou o paternalismo estatal a determinar as suas necessidades. Assim, através da participação, a economia politiza-se e recusa visceralmente que se confunda fruição pessoal com egoismo, bem-estar com descaso pela miséria do nosso semelhante e solidariedade com “caridadezinha”.
Enfim, o “novo socialismo” (que não pode considerar-se adquirido, uma vez por todas, mas um processo contínuo) não aceita unanimidades, nem leituras definitivas, mas caminha decididamente para uma cultura do ser, em oposição à burguesa cultura do ter, uma cultura comunitária, em oposição a uma cultura individualista. A cultura do ser não aposta no despojamento de quaisquer bens materiais, mas numa cultura onde os valores de fraternidade, igualdade e solidariedade entrem em competição permanente com a exploração, alienação e a marginalização social. No entanto, a luta hodierna, por um mundo novo, não passa pela apropriação, armada ou não, do poder, fazedora de mais uma ditadura, mas pela contestação da modernidade burguesa, a partir de uma perspectiva pós-capitalista, pós-colonial, pós-eurocêntrica e criação experimental do futuro – luta levada a cabo, por diversos protagonistas, visando a soberania popular e a emancipação social; luta da qual devemos sair reconciliados com os outros e connosco mesmos. Já li não sei onde o aviso de Paul Valéry: «Há dois perigos que nos ameaçam – a desordem e a ordem.» A desordem anuncia a morte; a ordem é a vitória da morte. Ora, a ordem económica global aumenta o Terceiro Mundo, pois que aumentou também o desregulamento do sector financeiro, a privatização e desnacionalização das riquezas naturais, o desemprego, a redução dos salários, etc., etc. A alternativa ao capitalismo é um problema moral. Por que não um socialismo, fora dos esquemas habituais do Logos, da Lei, do Significante? A Origem nunca é a Ordem. Se Prigogine tem razão: os processos desagregadores são desorganizações que reorganizam. É preciso pensar a negação como momento da liberdade. E deixem-me terminar com a definição de fé em Unamuno: «A fé não consiste em crer no que não vemos, mas em criar o que não vemos.»

(Continua)

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