sexta-feira, 16 de maio de 2008

Opinião: Gustavo Pires






Cultura de Vencidos

No que diz respeito à generalização da prática desportiva, entre 26 países europeus, ocupamos brilhantemente a primeira posição no que diz respeito àqueles que não praticam desporto.

Perante a realidade das estatísticas do INA que nos dizem que, em 2007, em Portugal, houve mais óbitos do que nascimentos, quer dizer, tivemos aquilo que há muito já era previsível, um saldo fisiológico negativo, os problemas que afligem os portugueses ganham uma importância acrescida, na medida em que tomamos consciência de que o país, ao cabo de mais de oito séculos de história, está simplesmente a morrer. E está a morrer por uma incapacidade absoluta de, nos últimos trinta anos, os dirigentes engendrarem as políticas públicas necessárias para arrancar o país da triste e vil miséria em que tinha acabado de sair do antigo regime. É evidente que se construíram muitas auto-estradas, muitos estádios, muitas obras faraónicas que, em muitas circunstâncias, num país com 2 milhões de pobres, são um atentado à inteligência, ao bom senso e, fundamentalmente, ao sentido de solidariedade que deve presidir às políticas públicas.
De facto, desde Abril construiu-se paulatinamente uma cultura de egoísmo que hoje se traduz numa cultura de vencidos. De facto, Portugal, no quadro do desenvolvimento económico e social no ranking das Nações Unidas está em queda acentuada, pelo que é um país vencido pela Grécia, a Eslovénia, Chipre e no ranking do rendimento da OCDE (2008) já está atrás da República Checa.
No que diz respeito à generalização da prática desportiva, entre 26 países europeus, ocupamos brilhantemente a primeira posição no que diz respeito àqueles que não praticam desporto. De facto, segundo “Eurobarometer”, 66% dos portugueses dizem nunca praticar desporto. Mas se a base do sistema desportivo é pura e simplesmente medíocre, no que diz respeito à elite, apesar dos auto elogios de alguns dirigentes desportivos, o que é facto é que, nos Jogos Olímpicos de Atenas (2004), Portugal ficou mediocremente na 61ª posição atrás de países como Marrocos, Coreia do Norte, Turquia, ou, entre outros exemplos significativos, a Etiópia.
Hoje, Portugal, corre o risco de perder a sua identidade cultural, para além dos golos do Cristiano. Quer dizer, não existe um credo e uma filosofia de acção. Ninguém sabe em que acreditar para além dos seus egoísmos pessoais ou corporativos. Se o processo de tomada de decisão acerca do Euro 2004 demonstrou a força e a pesporrência dos egocentrismos que regem o desenvolvimento económico e social no país, depois, o evento propriamente dito, exibiu de forma exemplar o estado de inconsciência e irresponsabilidade individual de milhares de cidadãos. Os resultados estão à vista. Os portugueses andam a trocar emprego e qualidade de vida, por betão armado. Mas não há meio de aprenderem.
Agora, mais uma vez, num ambiente de completa alienação nacional que, ao tempo da outra senhora, os poetas do “vento que passa” diziam ser pura e simplesmente a utilização fascista do desporto, os portugueses preparam-se para viver na maior das irresponsabilidades o Euro 2008. E os mais susceptíveis à propaganda política e comercial, que já começou, até vão ter direito a um cartão comprovativo. Um cartão de “alienado nacional”. Se isto não é a utilização pura e dura da dimensão fascista do desporto, então meus senhores, o fascismo não existe nem nunca existiu. Contudo, podem estar certos, toda e qualquer organização desportiva, deixada em roda livre, caminha tendencialmente para se transformar numa organização fascista. Se não acreditam olhem à vossa volta.
Assim sendo, o que é necessário é uma consciência cívica acerca da necessidade urgente de se organizar um futuro partilhado no que diz respeito às políticas económicas, culturais e de cidadania, conducentes à construção, através da educação e formação cultural, de uma verdadeira identidade nacional que, para além dos equívocos do Scolari, das defesas do Ricardo e dos dribles do Cristiano, tire o país do buraco em que se encontra. Porque, senão, os equivocados, os indefesos e driblados, serão certamente as gerações do recibo verde a 400 euros. Enquanto aguentarem.
Os portugueses nunca compreenderam o significado da expressão cultura desportiva, por muito que “A Bola” se tenha esforçado por a defender e explicar logo a seguir ao 25 de Abril. É pena, “A Bola” desistiu… A cultura organiza-se a partir dos arquétipos mais queridos de uma nação. Hoje, a prática desportiva popular, construída ao longo de um século, está a soçobrar perante modeles estranhos que nos chegam de fora e que estão, porque assumidos de uma forma absolutamente pacóvia, a destruir aquilo que sempre tivemos de mais genuíno. A saga da contratação de Ericsson, num clube que tem nas suas hostes, entre outros, um Humberto Coelho, a menos que hajam razões que o comum dos mortais desconhece, revela bem o estado provincianismo a que um dos maiores clubes portugueses chegou. Pessoa disse com razão que «se quisermos resumir numa síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo».
Hoje, o que impera em Portugal é uma cultura de vencidos, liderada por um certo nacional provincianismo. E o país pelas fracas lideranças deixou de acreditar em si. «Um fraco rei torna fracas as fortes gentes.» E, neste aspecto, o futebol espelha magnificamente o país que temos. Não são Pinto da Costa, Valentim Loureiro e outros que estão a ser julgados, é o país. Porque, o fumar a bordo, não é uma questão de fumo e, menos ainda, de pedir desculpa. É uma questão cultural, de uma cultura de vencidos por mais sucesso que tenham na vida. É o sucesso de uma cultura de vitória mas da vitória dos fracos, porque «o provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela». E o desenvolvimento acontece pelas atitudes, comportamentos e práticas, sobretudo de quem deve ser o primeiro a dar o exemplo. Quando assim não acontece, vive-se uma cultura de vencidos e premeia-se a vitória dos fracos. Desculpem lá….
Por isso, a degradação moral e social que o país se prepara para comemorar no Euro 2008 e, depois, logo de seguida, nos Jogos de Beijing, só é possível numa sociedade que pelo seu egoísmo não enxerga as diferenças e o contraste entre os vários grupos sociais, de que os obscenos vencimentos de alguns gestores, tal como os de alguns jogadores de futebol, são só um pequeno pormenor.
Os conflitos sociais vão explodir de um momento para o outro, e, quando isso acontecer, não haverá alienação desportiva que aguente os sentimentos das massas ávidas de direitos e de justiça. Depois, só se pode esperar o pior.

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