segunda-feira, 21 de abril de 2008

Opinião: Gustavo Pires






O Prof. Shou Yi Tung
e as Duas Chinas

O Prof. Shou Yi Tung morreu em 1978 aos 83 anos, um ano antes de ver a China entrar no Movimento Olímpico. Mas estas são as voltas em que o desporto e a política andam envolvidos, por muito que digam que o desporto nada tem a ver com a política.

Gustavo Pires

As relações da República Popular da China com o Comité Olímpico Internacional (COI) nunca foram fáceis. Antes da II Guerra Mundial, o Comité Olímpico Chinês, fundado em Pequim e inscrito no CIO em 1931, participou nos Jogos de 1932 em Amesterdão.
O Prof. Shou Yi Tung, estudante no Springfield College (EUA), desportista eclético, membro das equipas nacionais de basquetebol, futebol, basebol atletismo e de ténis, ao ficar na China Popular depois da tomada do poder por Mao Tse-Tung em 1949, enquanto terceiro membro chinês do COI de 1947 a 1958, tornou-se um verdadeiro herói de uma das páginas mais curiosas do Movimento Olímpico Internacional que tem precisamente a ver com a questão das “Duas Chinas”, uma disputa que se desenvolveu no COI durante 28.
Depois da Revolução Chinesa, o COI recebeu do Comité Olímpico Chinês a informação de que a Direcção tinha mudado para Taipé na Formosa aonde se organizou a China Nacionalista. Aparentemente, a mudança não levantou quaisquer problemas no COI, pelo que o registo da ocorrência ficou registada nos escritórios da organização, em Lausanne.
Entretanto, em 1951, portanto um ano antes dos Jogos de Helsínquia (1952), o COI recebeu uma carta de Pequim aonde se dizia que o Comité Olímpico Nacional estava formado, pelo que desejava ser reconhecido pelo COI, a fim de participar nos Jogos Olímpicos, a realizar na Finlândia. Para o efeito, Sigfrid Edström (1870-1964), presidente do COI, reuniu-se com os chineses, a pedido destes. Contudo, iniciada a reunião, ao verificar que estava perante entidades políticas representantes do governo, Edström recusou-se a falar com elas sobre questões desportivas. Para além do mais, Edström informou os chineses presentes que desejava, antes de tudo, falar com o membro do COI que ainda vivia na China, o Prof. Shou Yi Tung. Em consequência desta catastrófica reunião, a tentativa da China Popular entrar no Movimento Olímpico saiu gorada. Contudo, por pressão da União Soviética, a China Popular acabou por participar nos Jogos da XV Olimpíada.
Um ano depois, o Prof. Shou Yi Tung apareceu numa reunião do COI acompanhado por dois compatriotas. O presidente do COI saudou o Prof. Shou Yi Tung, perguntando-lhe de seguida quem eram os seus companheiros? Imediatamente um deles informou que eram intérpretes, na medida em que o Prof. Shou Yi Tung não falava nem francês, nem inglês. Todavia, o presidente Edström não aceitou tal informação, porque na última vez que estivera com o Prof. Shou Yi Tung tinha falado com ele em inglês. Depois, informou os acompanhantes do Prof. Shou Yi Tung que não passavam de simples comissários políticos, que a reunião do COI era restrita aos seus membros, pelo que lhes pedia para saírem. E saíram os três.
O Prof. Shou Yi Tung acabou por aparecer sozinho numa reunião do COI, realizada em Atenas em 1954. Então, depois de um largo debate, o Comité Olímpico Chinês de Pequim, quer dizer, da China Popular, foi reconhecido pelo COI. A partir de então, para além do Comité Olímpico da China Nacionalista – Formosa – com sede em Taipé, passou a existir também um Comité Olímpico da China Popular com sede em Pequim, com superintendência sobre a China continental. Ambos os comités estavam em condições de participar nos próximos Jogos Olímpicos, a realizar em Melbourne (1956) na Austrália.
Quando tudo parecia estar resolvido, eis senão quando o Prof. Shou Yi Tung, na reunião seguinte do COI (Paris, 1955), levantou a questão da Formosa ser parte integrante da China, pelo que o desporto naquela ilha devia estar subordinado ao Comité Olímpico de Pequim. Avery Brundage, ao tempo presidente do COI, informou que se tratava de uma questão política que não dizia respeito ao CIO. Em consequência, o Comité Olímpico da China Nacionalista - Formosa com sede em Taipé, continuou a coexistir com o Comité Olímpico da China Popular com sede em Pequim. O que aconteceu foi uma estrondosa derrota da República Popular da China, ao ponto da comitiva chinesa, de volta a Pequim, ter sido criticada pelo próprio primeiro-ministro, Zhou Enlai. Entretanto, as relações entre o Prof. Shou Yi Tung e Avery Brundage começaram a aquecer. Tratava-se do problema das “Duas Chinas”, uma questão crucial para Pequim.
Quando os Jogos de Melbourne estavam prestes a começar, os dirigentes do Comité Olímpico da China Popular informaram o COI que não participariam caso os “bandidos da Formosa” participassem. Brundage respondeu-lhes o discurso do costume: que não eram os países que competiam mas os atletas pelo que, etc., etc., etc. Pequim acabou por não participar nos Jogos Olímpicos.
Entretanto, nas várias reuniões do COI, as relações entre Avery Brundage e o Prof. Shou YI Tung foram-se azedando progressivamente, cada um deles acusando o outro de se servir do desporto para fins políticos. Nos EUA, ainda se vivia sob o efeito do Macartismo, na China, vivia-se o trauma do corte de relações com a União Soviética provocada pela ida de Nikita Kruchov aos Estados Unidos. Em consequência, a 19 de Agosto de 1958, em plena crise do Estreito da Formosa, a China Popular retirou-se do Movimento Olímpico acusando Brundage de ser um «agente imperialista dos EUA». E o nosso Prof. Shou Yi Tung escreveu ao COI: «Brundage, presidente do Comité Olímpico Internacional, violou deliberadamente a Carta Olímpica com o fim de servir o projecto imperialista dos Estados Unidos de criar duas Chinas. Declaro formalmente que recuso cooperar com ele ou de ter quaisquer relações com o COI enquanto esta organização estiver sob o seu domínio.» Na 55ª sessão do IOC, realizada em 1959, a questão das “Duas Chinas” esteve na ordem do dia com enormes repercussões nos EUA e alguns dissabores para Avery Brundage na medida em que o CIO teve de dar o dito por não dito.
A República Popular da China só viria a entrar novamente no Movimento Olímpico em 1979, com Lord Killanin (1914-1999), num processo moroso e complicado, na medida em que a questão das “Duas Chinas” no Movimento Olímpico era um assunto de fundamental importância para a afirmação do regime de Pequim. Depois, com o boicote a Moscovo (1980), por paradoxal que possa parecer, a República Popular da China acabou por vir novamente a participar nos Jogos Olímpicos, nos Jogos de Los Angeles (1984).
O Prof. Shou Yi Tung morreu em 1978 aos 83 anos, um ano antes de ver a China entrar no Movimento Olímpico. Mas estas são as voltas em que o desporto e a política andam envolvidos, por muito que digam que o desporto nada tem a ver com a política. Analisar o processo das “Duas Chinas” nos seus pormenores é, certamente, a estratégia mais certa para o COI ultrapassar as dificuldades que hoje tem de gerir nas suas relações com o regime de Pequim.

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