sexta-feira, 14 de março de 2008

Opinião — Manuel Sérgio






Vítor Serpa, no “Salão Portugal”

Com o "Salão Portugal", nasceu um autêntico escritor. E com fidelidade a princípios, sem lhes sacrificar jamais a objectividade nos juízos. A concepção de dignidade humana está no centro da sua obra.


Na evocativa paisagem de Belém, embalada pelo Tejo e à sombra dos Jerónimos, nasceu o Clube de Futebol “Os Belenenses”: Não cabe nos estreitos limites deste artigo expor as imagens e os símbolos que nós, os lisboetas de Belém e da Ajuda, incorporávamos, quando gritávamos, nas Salésias ou no Restelo, o nosso belenensismo; quando, em conversa amena, ou ilustrando com fervor as nossas razões, fazíamos de Belém e da Ajuda uma visão inesquecível de que os nossos olhos não sabiam (não sabem) despedir-se. Com os meus quase setenta e cinco anos de idade, sempre em comunhão com “Os Belenenses”, poderia compor um album esplêndido de figuras que viam, no nosso Clube, um símbolo de momentos significativos da História de Portugal. Mas, para nós, filhos da zona ocidental de Lisboa, dizer “Belém!” não é só relembrar reis, guerreiros e descobridores, é sobre o mais sentir Portugal, o nosso Portugal, o que nos trouxe ao colo, nos abraçou, nos beijou e vive adormecido nas nossas pupilas e no nosso sangue. Do friso dos belenenses que eu conheci, foi de certo o Homero Serpa que melhor compreendeu e amou as freguesias de Belém e Ajuda. Em toda a sua obra literária, elas têm lugar de relevo. O Homero era um semeador de amizades. Por isso, quando escrevia sobre o espaço citadino onde viveu a sua juventude ninguém como ele a retratar a alma dos dias, nas suas ruas e sítios de poiso, de convívio, de radical honradez.
O livro que hoje tenho à minha frente intitula-se "Salão Portugal – Novos Contos da velha Lisboa" e foi editado, há poucos dias, por uma editora de prestígio, a Dom Quixote. O seu autor é o Vítor Serpa, filho do Homero Serpa. Jornalista e escritor como o pai, é pelo ADN um modelo de conviva espontâneo e complacente. E, pela mesma via, se tivermos em conta os "relicta membra" da sua produtividade literária, que emerge diariamente do jornal A Bola, um poder de simpatia, de comunicação vibrátil, de magistério socrático prodigioso. Há colaboradores da imprensa, dita desportiva, que parecendo conhecer Stendhal, Balzac, Tolstoi, Dostoievsky, Proust, Claudel e não sei quantos mais – resumem o desporto a clubismo doentio, frustrando a veia ensaística que a massa de leituras lhe prometeria rasgada. O desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo. Falar ou escrever sobre o desporto deverá arrancar de uam ciência pós-normal, ou seja, onde a ciência é consciência também. Pressupõe, mais do que notoriedade, credibilidade. Vítor Serpa conserva inalterável, no seu jornal, a notoriedade que lhe advém da sua credibilidade, polida pela experiência e pelo estudo, como as pedras dos rios pelo cachoar da água. Ele é, indubitavelmente, um jornalista exemplar, com uma crença firme e funda em certos valores estáveis, superiores à flutuação das modas.
No seu livro "Salão Portugal", emergem vultos que eu também conheci. Nasci na freguesia da Ajuda e lá vivi até aos 41 anos de idade. Mas o que neste livro julgo dever salientar, para além da cultura literária admirável do seu autor, é que há nele menos o espectador do que o militante, onde a escrita não é “o vício impune” do diletante Valery Larbaud, mas um permanente enriquecimento interior, uma vontade imparável de subir dos factos aos valores. Vítor Serpa, com o seu primeiro livro de ficção, evade-se no cinema Salão Portugal e em tudo o que ele representava, nas velhas freguesias de Belém e Ajuda... que não morreram porque vivem nele e onde também viviam, há muito ou há pouco, os que deixaram de viver para os outros, mas continuam vivos para ele. Com o "Salão Portugal", nasceu um autêntico escritor. E com fidelidade a princípios, sem lhes sacrificar jamais a objectividade nos juízos. A concepção de dignidade humana está no centro da sua obra. Neste aspecto, continua a mensagem do seu pai – um “santo laico”, como nunca conheci igual. E sei, cada vez mais, que não conhecerei outro...
Mas hoje é dia de saudar o escritor Vítor Serpa; o seu padrinho literário, o poeta (grande entre os grandes) Manuel Alegre; e a Editora Dom Quixote. É dia de saudar (repito) o escritor Vítor Serpa de quem, no futuro, irá dizer-se, assim o espero, ser a expressão acabada de um dos primeiros ficcionistas portugueses.

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