sexta-feira, 14 de março de 2008

Opinião — Gustavo Pires






Laurentino Dias está errado
mas tem razão…


O problema é que o vértice estratégico do desporto nacional há muito que está só interessado em jogos palacianos, que lhe permitem manter-se agarrado ao poder, a usufruir das mordomias que hoje o erário público lhes proporciona.



Algumas associações distritais e regionais ameaçaram parar todas as actividades desportivas, caso seja aprovada a proposta do Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD). Embora não acreditemos que sejam capazes de o fazer, contudo, somos de opinião de que o devem fazer. Não por terem razão, ou por lhes assistir qualquer direito moral, mas por a sua atitude acabar por se voltar contra elas próprias o que, a acontecer, será um acto de auto-pedagogia de enorme valor social. Ao fazê-lo, também compreenderiam rapidamente que, nos últimos anos, sempre foram tal como estão a ser agora, uns joguetes nas mãos de uns tantos senhores que, em Lisboa, se divertem em jogos palacianos à conta da ingenuidade alheia.

Perante a longevidade do currículo das figuras de proa do movimento de constatação à RJFD, as associações deviam refrear o seu entusiasmo e deixarem-se de ideias peregrinas, como é a de realizarem uma concentração do desporto não profissional junto da Assembleia da República. Até porque, se o fizerem, não cometem nenhuma originalidade. Foi assim que em 1933, no 1º Congresso dos Clubes Desportivos, os dirigentes de então fizeram um convicto apelo à intervenção do Estado no desporto (In: “Os Sports”, 1/12/33). Salazar não se fez rogado pelo que, num ápice, pôs o movimento desportivo debaixo da autoridade do Estado Novo. Foi a institucionalização da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho em 1935, da Organização Nacional da Mocidade Portuguesa em 1936 e da Direcção-Geral da Educação Física, dos Desportos e Saúde Escolar em 1942.

Muito embora as associações venham agora dizer que «não aceitam a governamentalização do desporto», o que é facto é que o desporto, desde o tempo da monarquia, sempre viveu às sopas do Estado e desejoso de ser governamentalizado. Os dirigentes da cúpula do movimento associativo nunca verdadeiramente quiseram a sua própria autonomia porque, se a conseguissem, acabava-se-lhes a boa vida e tinham de começar verdadeiramente a trabalhar. Repare-se, por exemplo, aquando do boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo (1980), o Comité Olímpico de Portugal decidiu e bem ir contra a posição do governo português, pelo que participou nos Jogos. Para o efeito, obteve os recursos necessários através de, entre outros processos, uma subscrição pública. Foi uma trabalheira. Portanto, as possibilidades de afirmar a independência do movimento desportivo existem, o que não existe é vontade de as aproveitar. Porque, se existisse vontade, o movimento desportivo estava em peso e com convicção na Confederação do Desporto de Portugal (CDP), atribuindo-lhe o poder e o prestígio necessários para conduzir os destinos do desporto no País. O problema é que o vértice estratégico do desporto nacional há muito que está só interessado em jogos palacianos, que lhe permitem manter-se agarrado ao poder, a usufruir das mordomias que hoje o erário público lhes proporciona. Repare-se que o último jogo palaciano publicamente conhecido foi a tentativa de começarem a construir uma alternativa a Vicente Moura através de um golpe de mão na própria CDP. Em vez de darem prestígio, força e poder à CDP, quiseram transformá-la num Cavalo de Tróia, com o objectivo de conquistarem o COP. Os protagonistas? Toda a gente sabe quem foram.

Por isso, quando as associações dizem estar preocupadas com a «criação de pequenos grandes ditadores», mais não fazem do que revelar a sua ingenuidade. Os «pequenos grandes ditadores» há muito que já existem no desporto nacional. Ocupam o vértice estratégico do desporto há demasiados anos. São eles que estão a comandar as associações.

Quando se analisa o papel do Estado no desporto, não se trata de uma questão de quantidade ou de qualidade. Trata-se de ter um Estado com uma focagem equilibrada, em relação aos aspectos económicos e sociais da sociedade desportiva onde está a intervir. O Estado não pode ser “amnésico”, esquecendo a história do desporto e do País, nem pode ser “cego” ao ponto de ter uma política desportiva que se limita a deixar perpetuar os lóbis e os grupos de interesse que dominam o desporto. O Estado tem de ter uma acção inteligente que se deve traduzir em benefício das populações. Por isso, se os dirigentes das associações decidirem entregar as chaves das sedes ao Secretário de Estado, tanto melhor. Haverá sempre quem os substitua e até outros modelos de desenvolvimento a implementar, que devem passar por um reforço efectivo do papel das associações distritais no fomento das respectivas modalidades, independentemente da macrocefalia das federações. São os direitos constitucionais de acesso à prática desportiva que estão em jogo.

Muito embora consideremos que o desenvolvimento pode ser muito melhor cumprido quando considerado num sistema de valores éticos assumidos pela cultura vigente, do que apenas através de normas legais produzidas pelo próprio Estado, também não podemos deixar de considerar que é fundamental que o Estado garanta o normal funcionamento das instituições que exercem funções públicas. Sempre que estas deixem de funcionar na plenitude democrática, o Estado tem não só o direito mas também a obrigação de intervir. Se não se deve permitir que interesses meramente corporativos prejudiquem o bem comum, ainda se pode menos aceitar que seja uma entidade externa como a FIFA, através do Sr. Joseph Blatter, a determinar a organização do desporto nacional, como se Portugal fosse uma espécie de Zimbabwe. Assim sendo, bem podem ir fazer queixinha à FIFA. Por muito mau que as associações possam considerar Laurentino Dias, ele será sempre muito melhor do que Joseph Blatter que, hoje, representa aquilo que de pior o desporto pode ter, isto é, julgar-se com o direito de ser um Estado dentro dos próprios Estados.

É necessário perceber que, se por um lado, a autonomia do movimento desportivo deve ser preservada, por outro, a credibilidade das organizações desportivas decorre da sua capacidade de auto-regulação. E aqui está o cerne da questão. O excesso de intervencionismo estatal só pode ser condenado, se a capacidade de auto-regulação do movimento desportivo estiver a funcionar na sua plenitude. Ora, há muito que os mecanismos de auto-regulação do desporto nacional deixaram de funcionar. Por isso, muito embora Laurentino Dias esteja errado, na medida em que este tipo de intervencionismo não dignifica em nada o movimento desportivo e o próprio País, ele tem razão, porque não há outra solução à vista para dar um sentido de futuro ao desporto nacional.

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